Livro 'O Senhor do Anéis' completa 65 anos e mensagem humanista da obra é atual

Publicada originalmente em 1954, literatura criada por J.R.R. Tolkien influencia gerações de leitores ao explorar temas como amizade, horror da guerra e a proteção da natureza

O universo literário arquitetado por John Ronald Reuel Tolkien (1892-1973) foi adaptado para o rádio, teatro e cinema. Ganhou desenho animado no fim dos anos 1970 e a riqueza desses personagens fantásticos ainda é manancial fértil para as engrenagens da indústria do entretenimento.

Os donos do serviço de streaming da Amazon bateram o martelo e anunciaram para os próximos anos a produção de uma série baseada nas aventuras vividas na Terra Média. Completando 65 anos da primeira publicação, “O Senhor dos Anéis” resiste enquanto sinônimo de grandiosidade nos números de vendas e audiência. 

Na mesma medida, a paixão dos fãs é movida por elementos mais modestos, porém caros à narrativa de Tolkien. A jornada do hobbit Frodo contra as forças malignas de Sauron envolve companheirismo e empatia. Ao lado de Sam, Gandalf, Aragorn, Boromir, Legolas e Gimli enfrenta o horror da guerra e os desmandos de seres ambiciosos.

Perto de completar sete décadas, a mensagem deixada pelo autor é pertinente e atual. Diante de uma escrita complexa, responsável por descrever reinos, criaturas e falas nunca antes ouvidas, interessa compreender as razões e vivências do ser por detrás da obra. 

O escritor sul-africano (naturalizado britânico) já tinha entregue “O Hobbit” em 1937. Começou com apenas 1,5 mil cópias, esgotadas em menos de três meses. Doutor em Letras e Filologia, professor de anglo-saxão, inglês e literatura na Universidade de Oxford, desenvolveu logo na estreia os alfabetos e línguas desse mundo mágico. 

Trailer do desenho animado de 1978

Rascunhou ilustrações originais e desenhou até mesmo os mapas hoje conhecidos pelos fãs. Concretizava-se, assim, a carreira de um homem que perdeu ainda cedo os pais, esteve sob a tutela de um padre desde os 12 anos e encarou os horrores do campo de batalha da Primeira Guerra Mundial (1914-18).

Quando “O Senhor dos Anéis” foi encomendado, Tolkien ampliou a história do “Um Anel” e trouxe alguns ajustes em “O Hobbit” para que as duas produções tivessem uma ligação mais coerente. Testemunha de um contexto pessimista, o da guerra, idealizou uma Terra Média refém do extermínio de seus recursos naturais.

Diante da briga de forças poderosas, trouxe à luz dos leitores a imagem de homens corrompidos pelas promessas de fortuna. Os infames Orcs são a metáfora pontual de soldados levados ao limite pelo discurso inebriante do progresso. Seduzidos pela ganância. 

Nesse mundo habitado por povos, raças, histórias, mitologias e línguas próprias, pessoas simples acabam sendo tragadas para o conflito de terceiros. No primeiro livro da trilogia “O Senhor dos Anéis: A Sociedade do Anel”, é apresentado um grupo de guerreiros formado por humanos, elfos, anões e hobbits. Donos de vivências e objetivos distintos, os laços de amizade vão se tornando gradualmente fortes. Suficiente para que esses personagens arrisquem a vida uns pelos outros em prol de um objetivo maior.

Amizades e cordialidade

A jornalista e pesquisadora Cristina Casagrande busca nessas manifestações de afeto e carinho as respostas para o efeito hipnotizador da trama. Uma vez que a guerra se origina nas disputas entre homens e ganância, a magia segue mantida viva graças a seres que não dispensam o cuidado com o outro.

Autora de “A amizade em O Senhor dos Anéis”, fruto de dissertação defendida em 2017 na Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo (USP), o estudo incita reflexões sobre a força do companheirismo enquanto forma de superar adversidades.

A publicação parte da provocação atribuída ao filósofo grego Aristóteles, para quem a amizade perfeita é a benevolência recíproca e se dá somente entre indivíduos de caráter nobre. “O Senhor dos Anéis” mostra como essa forma de amor acessível a qualquer um de nós é essencial para vencermos as batalhas de nossas vidas, seja na guerra interior que travamos contra nós mesmos, seja no embate contra um poder maligno, como retrata J.R.R. Tolkien em sua grande obra.

Ao se permitir a exaltação dos humildes, a autora explica por que a presença dos hobbits é tão importante nos acontecimentos descritos pelo realizador estrangeiro. “Acredito que a amizade, ela é um grande incentivo, pois trabalha ‘perversões’ humanas, tanto sociais quanto pessoais. Incide sobre desde puxar um tapete no trabalho, confusão entre afetividade e sexualidade e até coisas mais coletivas. No texto de Tolkien, você tem isso muito claro de querer o bem do outro, sem querer pegar algo do outro. Esse é um valor que serve para a vida em diversas instâncias”, argumenta. 

65 anos depois de chegar ao mercado, “O Senhor dos Anéis” se permite a ser uma obra em constante apreciação. Representante de uma arte literária significante à fantasia. Tolkien permite o sonho e o escapismo ao extrair situações corriqueiras do cotidiano. Aquele mundo repleto de dragões, árvores falantes e elfos mágicos pode soar até estranho para quem o conhece numa primeira investida.

Mas, os perigos e bizarrices desse mundo também são extremos para os hobbits. Com a narrativa focada por meio de personagens franzinos e altruístas, aprendemos sobre esse universo durante as jornadas vividas por eles. O sucesso de Tolkien atravessa a compreensão de uma realidade por vezes inóspita. Ao fim, sobram a coragem e o amor como ferramentas de mudança e apoio.

Cinebriografia

O filme “Tolkien” guarda trama focada na juventude do escritor considerado o “pai da fantasia épica moderna”. Dono de outra cinebiografia no currículo, “Tom of Finland” (2017), na qual esmiuça a trajetória do ilustrador finlandês Touko Valio Laaksonen (1920-1991), o diretor Dome Karukoski busca desvendar as referências que fizeram J.R.R. Tolkien criar o mundo de “O Senhor dos Anéis”. 

Assim, o cineasta passeia pelas relações de amizade do escritor, adentra a Batalha do Somme, um dos mais sangrentos conflitos da Primeira Guerra Mundial, e a relação de amor com Edith Bratt (1889-1971). No longa, Nicholas Hoult (“X-Men: Fênix Negra”) encarna Tolkien e Lily Collins ("Ted Bundy: A Irresistível Face do Mal") interpreta Bratt. 

O trabalho organiza um “mito” ao redor da imagem do escritor, atribuindo aspectos da realidade à força criativa de seu universo mágico. Superficial e confuso em alguns instantes, a obra se destaca pela recriação de época e elenco afiado. 

Leituras

“A amizade em O Senhor dos Anéis”
Martin Claret
2019, 311 páginas
R$ 49,90

“J.R.R. Tolkien, o Senhor da Fantasia”
Darkside
2013, 280 Páginas
R$ 42,10 (Amazon)