Livro clássico de Joan Didion traz retrato dos EUA dos anos 1960

“Rastejando até Belém” (1968) ainda estava inédita no Brasil. Obra é uma das principais referências do ensaísmo e do novo jornalismo e documenta a contradição de personagens e paisagens daquela década

Era julho de 1967, quando a escritora Joan Didion publicou “A rocha secular” na revista The Saturday Evening Post. No ensaio, falava de um lugar repleto de flores e paz, mas nada tinha a ver com o então corrente Verão do Amor, como ficou conhecido o apogeu da cultura hippie nos EUA. Enquanto do outro lado da Baía de São Francisco, o LSD era o veículo de viagens psicodélicas, Didion percorria os 9 hectares da semideserta Ilha de Alcatraz, onde até quatro anos antes havia funcionado a famosa prisão de segurança máxima, apelidada de “A rocha”, em que em 30 anos de atividades só registrou uma fuga.  

“A rocha secular” é um dos 20 ensaios que compõem “Rastejando até Belém” (1968), que só agora ganhou edição brasileira, pela Todavia, com tradução da poeta Maria Cecilia Brandi. Tanta demora é difícil de explicar, dada a relevância da autora, da obra e do apelo de seus temas. 

O livro é um autorretrato dos anos 1960 nos EUA, feito no calor da hora, destacando paisagens e personagens que vão além da caricatura do paz e amor. Didion tem um talento magnético para histórias imensas em momentos que alguém com menos talento só enxergaria banalidades. Ela oferece ao leitor um testemunho preciso das tensões, da fragmentação social e das contradições da década. 

“Rastejando até Belém” é um clássico moderno. Sua influência é incontornável em, pelo menos, duas frentes, do ensaio e do jornalismo como expressão literária. Os escritos de Didion são notórios pela precisão com que constrói o texto, pelo estilo pessoal livre de lirismos e sentimentalismos e pelas ideias que expressa. O caráter testemunhal dos textos fez do livro uma referência do chamado “new journalism”, com as obras de Tom Wolfe, Gay Talese e Truman Capote.

Testemunhos

Não é de hoje que a vida intelectual norte-americana busca “vozes da consciência”. Nos anos 1960, figuras do gênero foram alçadas a uma condição de estrelas literárias, conhecidas pelo grande público, entrevistadas no horário nobre da TV e ouvidas sobre o tempo presente. Norman Mailer e Susan Sontag são dois exemplos do gênero. O mesmo vale para Joan Didion, 86 anos, que integra esse panteão há cinco décadas e meia. 

Didion está interessada em captar as expressões de um mundo desarmônico. Num virar de páginas, o leitor vai de John Wayne a Joan Baez. Ele, um ídolo decadente do cinema de faroeste, reacionário e apoiador da Guerra do Vietnã; ela, a nova estrela do revival da música folk, madrinha de Bob Dylan, envolvida politicamente com grupos progressistas.

Na maior parte das histórias contadas, Didion transita nos ambientes de forma discreta, quase invisível. À exceção são suas reflexões sobre o próprio ofício (caso do ensaio sobre as razões de fazer anotações) e uns poucos ensaios jornalísticos. O texto que dá título ao livro é um exemplo disso.

Trata-se de um retrato da cena de Haight-Ashbury, distrito de San Francisco (California) e epicentro da cultura hippie. Nele, a prosa da escritora por vezes parece perdida, espelhando a atmosfera meio alucinada do local e de seus personagens. O retrato não é do hippie risonho ornado de símbolos da paz, mas de uma zona cinzenta, onde habitam personagens lúcidos e adolescentes confusos, idealistas e oportunistas. Didion encontra crianças viajando em ácido lisérgico. O que pode retratar melhor o mundo, não apenas a cena hippie, que, só de longe, faz sentido?

Serviço
Rastejando até Belém
de Joan Didion
Tradução: Maria Cecilia Brandi
Editora Todavia
240 páginas
R$ 69,90 (edição física)/ R$ 42 (e-book)