Livro aprofunda detalhes sobre o universo de Clarice Lispector no ano do centenário da escritora

Organizado por pesquisadores ligados à Universidade Federal do Ceará, "Visões de Clarice Lispector - Ensaios, Entrevistas, Leituras" está disponível gratuitamente para download

O que mais é possível conhecer sobre Clarice Lispector (1920-1977)? De tão comentada – com obras onipresentes em estantes, nos círculos de leitura e publicações nas redes sociais – parece ser uma escritora da qual sabemos quase tudo. Leda ilusão, porém. 

“É correto considerar engano o fato de se pensar que, de tão celebrado e esmiuçado pela crítica, já se disse tudo sobre o texto de Clarice. Na realidade, a literatura tem um sentido de perenidade, pois os assuntos de que trata ultrapassam o momento do surgimento dos livros. Cada leitor e cada época vão imprimindo novas vertentes de apreciação para o texto literário”, considera Fernanda Coutinho, professora do curso de graduação em Letras e do Programa de Pós-Graduação na mesma área da Universidade Federal do Ceará (UFC).

Unida a Sávio Alencar, mestre em Letras também pela instituição, ela organizou o livro “Visões de Clarice Lispector - Ensaios, Entrevistas, Leituras”, publicado pela Imprensa Universitária da UFC e disponível gratuitamente no Repositório Institucional da universidade.

A obra chega a público integrando o calendário de comemorações pelo centenário da escritora – ucraniana naturalizada brasileira e incontornável nome da literatura nacional – com esta particularidade: é um dos primeiros títulos a serem lançados no Brasil para celebrar a efeméride, em 10 de dezembro.

Segundo Sávio, é uma alegria que o livro parta do Nordeste – onde Clarice, ainda muito pequena, primeiro chegou com a família, especificamente a Maceió e Recife – e da universidade pública, o que assinala a importância da entidade na difusão de um saber renovado em torno das Humanidades e da Literatura.

“A recepção já está se mostrando muito positiva. No repositório da UFC, o livro registra cifras bastante animadoras, muitos downloads já ocorreram. As redes sociais, esse outro termômetro, também têm o difundido bastante – as dezenas de compartilhamentos comprovam isso. O livro existe também na versão impressa, mas ainda não chegou até nós em função das atuais circunstâncias”, situa.

Particularidades

Tanto movimento em torno do material é justificado. Além do amplo alcance do nome da homenageada, o livro tem textos assinados por um robusto time, composto por 24 estudiosos da autora, tanto do Ceará quanto de outros estados. É organizado em três eixos, como o subtítulo assinala: ensaios, entrevistas e leituras. 

No primeiro, os pesquisadores participantes se aproximam da obra clariciana de maneira mais crítica e teórica. Já nas entrevistas, responsáveis por conferir a dimensão da recepção da escritora no estrangeiro, suas tradutoras comentam o processo tradutório dos textos dela para línguas diversas.

Por fim, numa dicção mais íntima e livre, as leituras flagram vários leitores de Clarice no momento em que se põem a sós com ela. Algo como se lê em “Felicidade clandestina”, em que o ato da leitura é, ao mesmo tempo, descoberta e desejo.

Para Sávio Alencar, Lispector é alguém que reúne e aproxima o público e, por isso mesmo, a vontade de trazer o título à tona. “Nesse encontro, eu e Fernanda – que já havia organizado ‘Clarices: uma homenagem’ (Imprensa Universitária, 2012), com a professora Vera Moraes – resolvemos devolver a alegria dessa leitura em forma de livro, numa data especial que é o centenário da autora”.

Fernanda Coutinho alarga a relevância da obra ao enfatizar que “Visões de Clarice Lispector” chega a fim de contribuir para o edifício interpretativo da obra da escritora, apresentando ensaios de teor diferenciado, com a marca de nossa contemporaneidade. “Muitos críticos que já fazem parte do cânone crítico da autora, aqui se reinterpretam, o que traz frescor às páginas da obra”, diz.

Nessa dinâmica, um dos pontos que ela ressalta no livro é a entrevista com Elvia Bezerra que, até pouquíssimo tempo, estava à frente do setor de Literatura Brasileira do Instituto Moreira Salles, entidade que abriga parte valiosa do acervo de Clarice. E, claro, não deixa de sublinhar a pluralidade do exemplar ao trazer tantas vozes, de Maria Elenice Costa Lima a Arnaldo Franco Júnior, passando por Yuri Brunello, Amanda Moura, Jacques Fux, Noemi Jaffe, dentre tantos outros.

“Como se pode perceber, o livro acredita na diversidade de leituras: as mais isentas, com olhar mais agudo face à construção textual, e outras em que o ‘eu’ dos leitores deixa transparecer o efeito de comoção que as palavras de Clarice lhe causa. Uma leitura, portanto, regida, antes de tudo, pela sensibilidade”.

Celebrações

Por conta do ano completamente atípico devido à pandemia do novo coronavírus, não há certeza de que muitos dos projetos que já estavam programados pela Universidade Federal do Ceará e por outras instituições para celebrar o centenário de Clarice ocorrerão de fato.

Apesar disso, Fernanda Coutinho e Sávio Alencar organizarão um evento virtual para contemplar a data, a partir da parceria do Departamento de Literatura, do Programa de Pós-Graduação em Letras e do Colégio de Altos Estudos da UFC.

No que diz respeito ao mercado editorial, também estão previstas a reedição da obra completa da escritora pela Rocco – editora detentora dos direitos sobre os textos da literata – e a nova edição de “Eu sou uma pergunta” e da correspondência de Clarice, feitas pela já consagrada estudiosa Teresa Montero. 

Tendo tantas vezes relido, em particular, a novela/romance “A hora da estrela” – por ser ‘Macabéa essa personagem que nos agarra e não solta mais” – Sávio Alencar iniciou na obra de Clarice com “A descoberta do mundo”, livro a que sentimentalmente está mais relacionado. Não à toa, quando mergulha nessas memórias dos primeiros e mais íntimos contatos com a autora, o estudioso denota a relevância dela no contexto das letras.

Clarice era devota de sua profissão; escrever, se era uma maldição (como chegou a dizer), também era uma missão. Há uma crônica famosa em que ela afirma ter nascido para escrever e para cuidar dos filhos. Essa inflexão, de quem aposta na palavra, certamente fez da sua obra o que ela é”, comenta.

“Seus diferenciais são muitos, a lista é longa. Mas eu ficaria, para situar apenas, com sua estreia na literatura, em 1943, com ‘Perto do coração selvagem’, que redefiniu os caminhos de nossa prosa moderna e deixou indelével o fator Clarice no nosso sistema literário”.

Da parte de Fernanda Coutinho – que descobriu Lispector pelos contos, experimentando uma sensação de aturdimento, “no sentido de pensar como a escritora encontrava inusitadas chaves de compreensão do ser humano, em cujo centro pairava, gloriosa, a noção de dúvida” – o diferencial da autora é a aposta na ousadia.

“Ousadia nas construções inusitadas, como se, para ela, as palavras tivessem uma força de imantação tal que todos os vocábulos e frases poderiam acabar se aninhando num abraço, cheio de aconchego – embora, em princípio, pudessem parecer distantes. Ousadia, ainda, na forma de tratar as experiências do viver humano. Em outras palavras, ela coloca a questão ‘O que é viver?’ para mulheres, crianças, que têm, acho, um ponto de vista bem original a respeito”.

Reviver cada meandro desse e explorar outros que, de tão importantes, nunca perdem o fôlego, é aposta certeira num desbravamento de nós mesmos, do outro e do mundo. Do indefectível universo de Clarice.

Visões de Clarice Lispector - Ensaios, Entrevistas, Leituras
Organização: Fernanda Coutinho e Sávio Alencar

Imprensa Universitária - UFC
2020, 242 páginas
Gratuito e disponível online no Repositório Institucional da Universidade Federal do Ceará