Lembra do Kichute? Sensação nacional por duas décadas, calçado formou geração saudosa e emocionada

Em livro, diferentes pessoas relatam vivências com o sapato lançado na Copa de 1970 e, desde a época, famoso por calçar os pés de gregos e troianos

Pretinho básico, jeitão de chuteira, cadarços que amarravam na canela. Fácil matar a charada: estamos falando do Kichute. Sensação nacional por duas décadas – dominou os pés de crianças e adolescentes até meados dos anos 1990 – um dos calçados mais famosos do país evoca saudosismo e emoção.

Pudera: quem usou, não esquece; quem nunca usou, certeza já ouviu falar. O tênis foi lançado na esteira da Copa do Mundo do México, em 1970. À boca miúda, dizem que foi pé quente. Garantiu ao Brasil a terceira vitória no evento futebolístico. E conseguiu ir mais longe. Formou toda uma geração unida pelos longos cadarços e os cravos de borracha no solado.

“Não me lembro bem quando ganhei o primeiro. Sei que meu irmão e minha irmã mais velhos usavam, e eu pedi um para mim. Devo ter usado até os 16 anos porque eu gostava muito de jogar bola”, recorda Gonçalo Junior, cuja fala deve ser igual à sua. É que o calçado virou mania. Era usado tanto para ir à escola quanto para o futebol.

Devido ao extenso cadarço, costumava-se entrelaçá-lo na canela antes de amarrá-lo, ou mesmo dar voltas nele próprio, passando pelo solado. Funcionalidade estilosa. Com o slogan “Kichute, Calce Esta Força”, o ápice veio entre os anos de 1978 e 1985, quando as vendas ultrapassaram nove milhões de pares anuais. Presença incomparável nas bandas de cá.

Foi o gigantesco alcance desse produto de valor acessível e longuíssima duração que atraiu Gonçalo para uma pesquisa tão importante quanto generosa. O jornalista e escritor quis resgatar, por meio de livro, a memória afetiva de quem sentiu e viveu a popularização do tênis – figura presente inclusive durante o regime militar brasileiro.

Assim nasceu “Quando Éramos Iguais: Memórias de uma geração que usou Kichute”. A obra é o retrato carinhoso e cativante de 54 pessoas que cresceram entre as décadas de 1970 e 1980 com o Kichute nos pés. Meninos e meninas que o adotaram também como parte do uniforme escolar – em alguns espaços, virou obrigação trajar o bendito.

“A emoção une todos. É arrepiante. As pessoas falam da própria infância e isso toca todo mundo. Como editor, estimulei para que todos amarrassem suas histórias no final”, diz.

O critério utilizado para escolher os entrevistados foi o potencial curioso e singular de cada narrativa. Tem desde editor-chefe de revista até cartunista, arquiteto, donas de casa e vendedor de loja. “A graça está em variar esses perfis”.

Quem não usou Kichute?

A ampla galeria de personagens convoca a uma pergunta: no auge do produto, quem nunca usou Kichute? Gonçalo sentiu a potência da questão a partir de uma brincadeira em uma rede social, há alguns anos. Na ocasião, falava do quanto o calçado tinha sido importante para a geração que foi criança na década de 1970. “Em poucas horas, foram mais de 200 curtidas e dezenas de comentários emocionantes, todos curtinhos. Vi ali a possibilidade de algo maior”.

Começou, assim, a mandar mensagens privadas para as pessoas que comentaram na publicação a partir dos depoimentos mais inusitados. A intenção era pedir a elas um pequeno relato sobre a relação com o calçado numa perspectiva afetiva e memorialística. O emocional se impôs sobre o conjunto a partir do primeiro relato e foi indo. Segundo o jornalista, tudo fluiu para isso, feito rio que corre para o mar. “Um rio de sentimentos, emoções e saudade”.

“O livro tem vários aspectos interessantes: históricos, sociológicos, afetivos. Espero que chegue àqueles que o usaram e às novas gerações, para que conheçam esse fenômeno tão interessante que marcou a vida de seus pais”.
Gonçalo Junior
Jornalista, escritor e pesquisador

O Kichute era um misto de tênis básico e chuteira – talvez o primeiro Sapa-Tênis-Chuteira de nossa história – e foi produzido no Brasil pela Alpargatas. Os primos mais próximos do calçado e que o precederam foram os tênis Conga (1959) e Bamba (1961). Esses três são os primeiros modelos de tênis produzidos no país em escala industrial. O Conga tinha linhas mais femininas, enquanto o Bamba mais masculinas e esportivas.

Os mais peraltas de plantão vão concordar: além da prática esportiva, o Kichute também era perfeito para subir em árvores. A flexibilidade e os detalhes laterais auxiliavam na aderência e no tracionamento para andar sobre os galhos. Um recorte desses atributos pode ser encontrado inclusive no cinema.

Em novembro de 2009, estreou o filme “Meninos de Kichute”, adaptação cinematográfica do livro homônimo de Márcio Américo, inspirado no calçado. O longa foi premiado como Melhor Filme Brasileiro na 34ª Mostra Internacional de Cinema de São Paulo.

Todos parecerem iguais

No que diz respeito ao uso do calçado durante a ditadura militar, Gonçalo conta que, nos depoimentos da obra, ninguém fala disso. Ele toca no tema apenas na apresentação, para contexto de época. Mas é bem sabido que a História acabou por vincular o Kichute aos anos 1970 e à repressão. 

Ao mesmo tempo, havia uma política de incentivo à indústria nacional que dificultava a importação de calçados. Havia poucas opções. Soma-se a isso o fato de o Kichute ser durável e financeiramente acessível, e então temos um filão de consumo.

A importância do livro organizado pelo pesquisador baiano reside sobretudo nisso: é a história oral de um tempo em que um simples calçado, sem beleza alguma, fez todos parecerem iguais – ricos e pobres, negros e brancos, crentes e ateus. 

“O Kichute não existe mais, praticamente. Não está nas lojas físicas ou virtuais. Fala-se que ainda são encontradas unidades em regiões pobres do interior do país. A empresa que o fazia não retornou as muitas tentativas minhas de obter informações”, contextualiza o escritor, alocando o período em que o tênis perdeu espaço para modelos importados, nos anos 1990.

“Mas a gente apelida uma geração de algum produto quando a relação é duradoura e intensa. Como a do rock and roll, da Jovem Guarda, Coca-cola, calça boca de sino, minissaia etc. Hoje, temos a geração digital, tivemos a do Orkut... Qual seria a atual? Tiktok?”.

 

Quando Éramos Iguais: Memórias de uma geração que usou Kichute
Organizado por Gonçalo Junior

Editora Noir
2022, 144 páginas
R$59,90 (venda direta com frete grátis no site da editora)