Lar do Carnaval, da boemia e da amizade, que tal um brinde aos 60 anos do Flórida Bar?

Ponto de encontro de intelectuais, políticos, artistas e fãs de um bom papo etílico, visitar esta casa é conhecer parte da história dos fortalezenses e da paixão cultural em torno do bar

Série de matérias Conversa de Bar conta histórias da capital cearense pelas mesas da boemia

Considerado o "reduto dos boêmios", o Flórida Bar comemora exatos 60 anos de existência. Visitar o número 38 da Rua Dom Joaquim é adentrar um rico pedaço da história de Fortaleza. Hoje, o tradicional comércio tenta manter acesa a chama da camaradagem e devoção à mesa de bar.

Esta jornada começou em novembro de 1962, quando o ex-jogador José Joaquim da Silva Sá, mais conhecido como "Sá Filho", realizou o sonho de montar o bar próprio. A primeira parte na biografia do Flórida foi escrita ainda no Centro da Capital, na Rua do Rosário, onde atendeu religiosamente por 35 anos.

Um segundo momento acontece quando o estabelecimento muda de endereço e passa a receber os clientes na Praia de Iracema, onde resiste atualmente. Nessas seis décadas, estas mesas abrigaram clientes dos mais variados tipos e origens. Entre as gerações de anônimos que curtiram o local, somam-se também as autoridades políticas e jurídicas. É também lar querido e visitado por artistas, jornalistas, escritores e a turma chegada ao esporte.

"O fato marcante do nosso bar é o próprio dia-a-dia de seu funcionamento", contou Sá Filho ao Diário do Nordeste em 1987. Contudo, podemos afirmar que a rica estrada do Flórida começa antes mesmo da data oficial de fundação. Essa jornada despertou no final dos anos 1930, quando um jogador do Flamengo aterrissou nas águas da Barra do Ceará.

O craque que veio dos céus

Muito se pergunta sobre o nome de batismo da casa. Percorrendo os arquivos do Diário do Nordeste, descobrimos que a ideia de Sá Filho era registrar o negócio como "O Jangadeiro". Conta-se que outro estabelecimento já funcionava com esta marca e o bar acabou se chamando Flórida.

Assim como o clima ensolarado do Estado norte-americano, o bar sempre teria um caloroso atendimento para os clientes. Em um sentido mais poético, Flórida representaria a existência deste lugar ensolarado e feliz. Um território de sonhos e encontros, erguido pelas mãos de um carioca que fez fama nos gramados.

No início da década de 1930, Sá Filho foi craque do Flamengo. Vestiu as camisas de São Cristovão e Madureira (RJ). Passou por Vitória (ES), Botafogo (BA), Náutico e América (PE). De Salvador veio para Fortaleza, defender o Ceará Sporting Club.

Isso aconteceu em 1939, quando ele e os jogadores Bünha e Limoeiro são contratados. A notícia da aquisição dos atletas foi o assunto dos jornais, afinal era a primeira vez no Estado que um atleta de futebol chegava de avião. Foi dois dias de Salvador para Fortaleza, segundo palavras do fundador. "Naquele tempo o avião baixava n'água. A gente chegou lá na Barra do Ceará".

O Rei do Carnaval 

Sá filho largou as chuteiras e chegou a ser dirigente do Alvinegro cearense por 16 anos. Aposentado da área esportiva, convocou os amigos e fundou o Flórida. O comércio passou a ser destaque no setor de bares e restaurantes. Um espaço de reuniões, jantares e almoços especiais.

Esta relação afetuosa com a cidade ganha força no período entre 1967 e 1973. Aqui, o bar vive grande fase e se consolida como a "Adega do Rei", por ser frequentado pelo Rei Javeh. O rei momo prontificava o Flórida como o lugar de concentração dos foliões durante o carnaval. Esta tradição perdura até hoje na essência da casa.

O atendimento na região central de Fortaleza gerou inúmeros causos. Ao final da tarde, para atender a procura, o calçadão da rua do Rosário recebia várias mesas ao ar livre. Em 1982, quando já contava 20 anos de labuta, o bar mantinha funcionamento ininterrupto, todos os dias do ano, das 7 da manhã às 22 horas. Reportagem do Diário do Nordeste daquele ano descreve como era o clima daquele pedaço da capital.

"Mas é, sobretudo após às 18 horas, quando encerram-se os expedientes de repartições e de bancos e os escritórios fecham seus postos, que o barzinho lota. Superlota e muita gente volta sem conseguir lugar para sentar, sobretudo na época dos pagamentos de salário".

Panelada e política

Com a partida de Sá Filho, o legado do Flórida passou a ser administrado por Sá Neto, que já trabalhava com o pai. Em 1987, o gestor explicou ao Diário do Nordeste que inúmeras decisões no campo da política saíram de rodas de conversa no Flórida.

Em tempos de campanha eleitoral, o ponto fervia por conta das discussões. Obviamente, assegurou o proprietário, os debates sempre decorreram num clima de profunda amizade. Quando os debates acalorados terminavam, o ambiente era resfriado por uma cervejinha.

Além de refúgio das autoridades políticas, o bar recebeu desportistas, juristas, bancários, funcionários públicos e toda sorte de anônimos e paus d'água que escreveram alegres e etílicas noites. Dos ingredientes deste sucesso constam o atendimento considerado redondinho e o compromisso de um tira-gosto dos bons.

Nessa área degustativa, a panelada reina por anos no carinho e afeto da turma. Nestas seis décadas, o prato tornou-se um símbolo das manhãs de domingo. Em um destes dias, estima-se que o bar chegou a produzir 230 quilos da iguaria e alimentou mais de 200 clientes. Carne, dobradinha, feijoada, carneiro, feijão-verde também são pérolas do cardápio.

Outro evento pitoresco daquelas mesas era o famoso peru do réveillon. Conta-se que nas noites do dia 1 de janeiro, boa parte dos fregueses se reuniam e traziam o tira-gosto (peru assado) de casa. A descontração tomava o lugar e a turma brincava com o fato de boa parte dos clientes terem a idade avançada. Rolava até uma chamada para saber quem da turma ainda estava vivo para encarar o novo ano.

História nas paredes

A decoração do Flórida é um capítulo único na memória dos clientes. E as paredes tomadas por fotografias eram um espetáculo à parte. Muitas daquelas imagens revelam momentos de grande importância à vida da cidade. O destaque são as grandes fotos panorâmicas do fotógrafo Leocácio Ferreira (1921-1983).

Tido como um dos primeiros frequentadores, o paraibano fez do local seu escritório e casa.  Além do futebol e de acontecimentos históricos, as molduras do Flórida também mostravam a paixão de Sá Neto pelo automobilismo. Em foco, registros ao lado do ídolo Ayrton Senna, que o comerciante conhecia pessoalmente. 

Inaugurado em uma era onde mulher era impedida de frequentar bar (somente acompanhada), o Flórida testemunhou as mudanças de comportamento na sociedade. Em 1995, Sá Neto parte prematuramente e o empreendimento passou a ser tocado pelo irmão Ermínio Sá. Em abril de 1997, o estabelecimento foi transferido para o endereço onde funciona até hoje, preservando essa trajetória sem igual na boemia.

Um dos clientes símbolo dessa nova fase é o cantor Falcão. O multiartista recorda que começou a frequentar o Flórida Bar no início dos anos 2000. Foi por intermédio do vizinho do bar, Sérgio Braga, proprietário da Livraria Livro Técnico. Foi lançar um livro e não mais saiu de lá. 

"Fui conhecendo as pessoas, fazendo amizades. Também tinha nessa época o Audifax Rios, ainda vivo, que juntamente com o Sergio Braga, eles tinham acabado de fundar o Clube do Bode.  Era um clube literário, poético, musical e etílico que se reunia na sexta-feira à noite e também no sábado ali na calçada do Flórida. E foi daí esse meu convívio" detalha. 

E o Futuro do Flórida?

Há quatro anos, a família decidiu transferir o comando da casa. Quem assumiu a missão foi José Fernando, ex-garçom do bar, que iniciou no local como ajudante. A responsabilidade de preservar essa história é dividida com o garçom "Beim", uma lenda do ramo de bares na cidade que trabalha no Flórida desde os anos 1980.

José Fernandes Sales Monteiro começou no Flórida Bar em 1987. Mas, se o cliente chegar por lá e procurar este nome não encontrá ninguém. Melhor chamar por Beim. Ele conta que trabalhava no Palácio Progresso, no bar Recanto do Pajeú. Quando trabalhava no Clube da Caixa, surgiu uma vaga no Flórida e foi indicado. "Vim trabalhar e estou até hoje aqui", comemora. 

"Tanto o Recanto do Pajeú como o Flórida eram bem frequentados, com muita gente importante. Com juiz, advogado, delegado, esse pessoal tudo. Naquela época, o Palácio Progresso era um dos melhores prédios que existiam. Tinha o Fórum ao lado da Catedral... essa turma se reunia no final da tarde", relembra da movimentação no Centro.

Já o atual gestor, José Fernando, detalha que chegou ao Flórida com 16 anos. Veio através do garçom chamado Rosalvo. Com o tempo foi se aperfeiçoando, tendo intimidade maior com os clientes, garantindo bom atendimento e conquistando espaço. É quando surgiu o momento decisivo na trajetória do empregado.

"Seu Ermínio estava um pouco cansado devido ao trabalho e muitos anos de Flórida. Resolveu vender o ponto. Era vender a tradição da família ou então fechar. Como sempre fui fã dessa casa, sempre achei essa casa maravilhosa, resolvi dar continuidade", defendeu.

O passo seguinte foi entrar num acordo e juntar os 12 anos de serviço que tinha. "Prestamos conta, resolvemos e estou aqui já há quatro anos dando continuidade a tradição que agora faz 60 anos e pretendo continuar mais e mais anos por aí", finaliza. 

Segredo do sucesso

Perguntamos a Falcão qual seria a receita do Flórida Bar nestes 60 anos de trajetória. "Explicar mesmo eu não sei, mas eu acho que seja devido a ser um ambiente que tem uma uma cerveja gelada, tem um tira gosto legal. Antigamente era lá no Centro da cidade, frequentado mais pelos os profissionais liberais que trabalharam ali no centro, os lojistas e os próprios comerciais. Então, quando o bar mudou pra Praia de Iracema, esse pessoal fiel seguiu também e até hoje está lá esse pessoal". 

Para Falcão, onde se tem a democracia mais plena que existe é no bar. "É no bar onde vocês faz boas amizades, onde perde outras. Você pode inclusive, de repente no campo político, ser eleito através de um bar ou pode perder a eleição ou pode virar político. Tudo pode acontecer num bar. É um lugar assim quase terapêutico. O sujeito que tá cabisbaixo, tá em casa, não tem o que fazer... Ou levou um chifre ou coisa parecida vai pro bar que ele vai ter uma terapia pra ele lá", completa Falcão.