A obra do diretor, produtor e roteirista Hector Babenco (1946–2016) devassou um Brasil desconhecido da maioria de sua população. O olhar incisivo e cru iluminou seres marginalizados. Narrou desventuras e infortúnios de um submundo do qual insistimos em afugentar de nossas rotinas.
Filho de judeus poloneses e russos. Argentino naturalizado tupiniquim. Desse estrangeiro nasceram peças únicas como “Lúcio Flávio, o Passageiro da Agonia” (1977), “Pixote: A Lei do Mais Fraco” (1981), “O Beijo da Mulher-Aranha” (1985), “Brincando nos Campos do Senhor” (1991) e “Carandiru” (2003).
Essa existência dedicada à sétima arte é materializada no documentário “Babenco – Alguém tem que ouvir o coração e dizer: Parou”, dirigido por Bárbara Paz. Na última semana, foi escolhido pela Academia Brasileira de Cinema (ABC) como o representante nacional na disputa por uma vaga na categoria de melhor filme internacional no Oscar 2021.
A indicação reflete a carreira vitoriosa em grandes festivais. Em 2019, foi premiado no Festival de Veneza na categoria “Melhor Documentário”. No início do ano foi agraciado em categoria semelhante no Festival internacional de Cinema de Mumbai, na Índia.
Delicadeza
Bárbara Paz esteve ao lado de Babenco nos seus últimos anos de vida. Tempo pelo qual a luta do cineasta contra o câncer ficou ainda mais agressiva. Um dia depois de socorrer o marido num hospital em Paris, ela começou a filmá-lo.
Em paralelo, aprofundou-se uma série de conversas gravadas. Em pauta, todos os temas possíveis da estrada percorrida pelo homem e cineasta. Daqui nasce o livro “Mr. Babenco: Solilóquio a Dois Sem Um” (2019) e o filme que estreia nos cinemas na quinta-feira (26).
“É um filme-missão. É um filme que eu precisei fazer. Precisava registrar esse homem antes que não houvesse mais tempo. Precisava registrar esse homem de perto porque a filmografia dele, os filmes estão aí para serem vistos, os filmes maravilhosos que ele fez. Mas, quem era realmente esse homem, a história dele por ele mesmo?”, divide a premiada diretora.
Babenco morreu em 2016. Restou a Bárbara continuar o projeto. Cercou-se de farta pesquisa e arquivo. Mergulhou em cada fase da carreira do diretor. Costurou referências, organizou os registros da intimidade.
Foi durante o processo deste documentário que Babenco entregou seu último filme, “Meu amigo hindu” (2015). Ela acatou a missão e realizou o derradeiro desejo do companheiro. Babenco é protagonista de sua própria morte.
Generoso
“Babenco – Alguém tem que ouvir o coração e dizer: Parou” é um filme que celebra a vida. O faz, adentrando a indecifrável e misteriosa travessia do desterro. Solucionar este fim ou ansiar por respostas à morte não são objetivos da diretora.
O documentário entrelaça cinema, amor e memória. A única maneira possível de expurgar tanta dor e ausência veio com trabalho. Foi pela generosidade e coragem de dividir processos tão íntimos que Bárbara construiu seu elogiado documento.
É possível dialogar um tema tão adverso e espinhoso como a morte? A estreia da atriz na direção de longas (ela também dirigiu os curtas “Minha Obra” e “Conversa com Ele”) consegue trilhar este desafio. Imersão cuidadosa e amorosa, o doc nos entrega um personagem que sempre lutou pela vida. O cinema, seus filmes, a lida por detrás das câmeras foram o alimento e combustível da jornada galgada por Babenco.
Início e fim se alternam a todo instante da projeção. A fragilidade física do documentado nos convida a compreender suas motivações e escolhas. Adentramos bastidores extremos, como o fato de Babenco estar no auge da carreira e lutar silenciosamente contra a doença.
A montagem assinada por Bárbara Paz e Cao Guimarães é alma e acerto na empreitada. Filme de colagem, cenas raras dos sets, dos quartos de hospital, das obras cadenciam a constante conexão entre passado e presente. Memórias, reflexões e diálogos comuns do cotidiano alimentam a estrutura dessa narrativa.
A fotografia preto e branca e a edição cuidadosa do áudio ampliam a experiência de conhecer as criações e o criador. Do primeiro câncer (aos 38 anos) até a morte (aos 70), Babenco encontrou na arte de contar histórias a força de não se dobrar diante das circunstâncias.
“Babenco – Alguém tem que ouvir o coração e dizer: Parou” foi germinado unicamente pela perspectiva do amor. Seu caráter tocante adentra despedida e situações angustiantes por meio da celebração da vida. É também uma declaração de paixão ao cinema. Uma especial dança a dois.
Reconhecimento internacional motiva diretora
Bárbara Paz encarou a missão de contar os últimos passos do companheiro. “É um filme de amor à vida”, situa. Com chances de competir ao Oscar logo na estreia atrás das câmeras, a gaúcha explica que era preciso retratar o homem que lutou para sobreviver e fazer filmes.
“Um argentino naturalizado brasileiro foi pro Mundo. E doente, lutando e que se manteve... Acho de uma beleza ao mesmo tempo, sabe? De uma força que ninguém fazia ideia”, divide a premiada diretora.
A glória em Veneza e o recente anúncio da Academia Brasileira de Cinema representam, acima de tudo, o aval para continuar produzindo no audiovisual.
“Sabemos que vivemos um momento muito difícil no Brasil no cinema. Com todos os problemas políticos que enfrentamos além de tudo. Mesmo assim, o cinema brasileiro em 2019 foi vitorioso em muitos festivais. Olha o quanto que viajamos pelo mundo, o olhar para o Brasil. Ele está sendo observado. Mesmo que o Brasil não aplauda, o Mundo está aplaudindo. Foi só um aval pra me dizer: ‘Bárbara, continua. Não para’, compartilha a cineasta.