Qual foi a última vez em que você imprimiu ou revelou uma foto? Talvez a memória falhe nesse momento, mas isso não é problema. Na verdade, é sintoma. Diante dos avanços na fotografia digital e da facilidade do armazenamento em nuvem, deixamos de nos dedicar ao velho hábito de trazer registros para as mãos.
Realidade que pouco a pouco tem mudado a partir da adesão de algumas pessoas – seja por nostalgia ou para materializar de vez os instantes. Thiago Nogueira, 20, faz parte do segundo grupo. Ele adquiriu uma impressora no ano passado e, mediante estreito diálogo com a fotografia devido a formações na área, decidiu comprar papel específico para imprimir o resultado dos cliques prediletos.
Há dois motivos que o fazem imprimir as imagens: geralmente são fotos com composições mais interessantes ou aquelas nas quais há um valor sentimental, envolvendo parentes, amigos, datas importantes ou uma série específica de momentos.
A relevância dessa prática é sempre bastante perceptível. “É quebrar uma barreira. A tentativa de tornar o efêmero em eterno. Transformar um momento capturado pelo digital em físico, revê-los com o toque das mãos ou então enquadrados – e com destaque. Isso agrega valor às fotografias. A mais simples foto impressa tem algo que as telas não oferecem”.
A esperança de Thiago, assim, é de fazer vários álbuns ou cada vez mais séries de registros. Para retornar ao movimento de revelar imagens – no qual há presença de um negativo fotográfico junto ao processo de revelação química, que torna esse negativo em positivo – ele aconselha o contato com pequenos empreendedores locais ou então o aprendizado de algum método, a exemplo da sala escura. “Impressão em papel fotográfico é a maneira mais cômoda”, sublinha.
“Guardo as minhas fotos em um pequeno álbum para fotografias tamanho 10x15. Em casa, temos dois ou mais álbuns de família. É rever ali a infância, as casas com rebocos impecáveis, os avós sem cabelos brancos. É um tempo tão perto e tão distante que revivemos quando revemos. É o mais próximo que temos do teletransporte. Tão únicas e ricas de valor sentimental que ultrapassam o tempo. Algo a se salvar num incêndio”.
Não à toa, o desejo de permanecer nessa dinâmica, dando corpo às memórias, ampliando os contatos. “Perceber que cada momento é único e urgente em cada pessoa. A possibilidade de guardar esses instantes e afetos por meio da foto não deve ser uma fuga do real, mas uma forma de preservar essas riquezas. Quando estou com as fotos em mãos, gosto de perceber as cores, como eu e o ser/paisagem estavam quando cliquei. Assim, fico mais tempo naquele momento, diferente de passar para o lado na tela”, dimensiona Thiago.
Onde estará guardada nossa história?
Fotógrafo e produtor, Tomaz Maranhão explica que revelar imagens ou simplesmente imprimir arquivos digitais nos faz voltar a uma época em que nossa relação com a fotografia era tátil. Hoje, até podemos ter um grande volume de registros guardados em um HD, computador, celular ou cartão de memória. Mas perdemos o prazer em rever os instantes, fazendo com que eles acabem flutuando num lugar somente digital.
“Eu me pergunto: e se esse espaço digital ruir? E se o HD queimar, e se perdermos a senha do backup? Onde estará guardada a nossa memória, história e vivências? A importância de revelar ou imprimir fotografias está no fato de conseguirmos revisitar uma memória que chega a ser física, e que não desaparecerá num clique. A fragilidade das ‘memórias flashes’ está nisso”, contextualiza.
Funcionário do Museu da Fotografia Fortaleza (MFF) e à frente de oficinas na casa, ele percebe que os jovens têm buscado imprimir ou revelar as próprias fotos – alguns, com maior acesso, utilizando câmeras fotográficas do estilo polaroid. “Não é a maioria, infelizmente. Mas é interessante observar o saudosismo dessas pessoas, que provavelmente não tiveram contato direto com o processo de revelação fotográfica que os pais e avós tiveram”.
Ao mesmo tempo, questionado sobre os impactos no estímulo de uma outra memória afetiva diante da prática de revelar ou imprimir fotos, Tomaz acredita numa leve perda dessa memória em consequência da vasta otimização da imagem. Na contemporaneidade, ao fotografarmos com o celular, de imediato temos esse registro em backup na nuvem.
Ao longo do dia, também guardamos prints, fotos de redes sociais, memes, documentos, materiais gráficos e tantas outras coisas nas quais fica a pergunta: que importância damos aos registros deixados nesse amontoado de informações que é a memória digital do smartphone?
“Gosto da fotografia revelada ou impressa pelo clima que se estabelece ao nos depararmos com uma nas mãos. Automaticamente nos desligamos para entrar num ambiente, quase como um portal, que a imagem revelada nos faz passar. No digital, dificilmente conseguimos ter com tanta intensidade a experiência de reviver os momentos como acontece com a fotografia impressa”.
Memória humana e digital não bastam
Por isso mesmo, o fotógrafo tem buscado cada vez mais cultivar o hábito de corporificar imagens, baseado na crença de que a memória humana e digital não bastam. Feito Thiago Nogueira, Tomaz também guarda em casa álbuns de família com imagens que lhe teletransportam para lugares que nunca esteve. São arquivos capazes de transmitir diversos sentimentos por meio de episódios importantes para a própria história.
“É essa experiência que quero propor às pessoas que virão nas próximas gerações. Busco sempre ter registros de momentos importantes da minha vida, mas também tenho buscado imprimir fotografias do meu cotidiano, onde não necessariamente apareço, mas como um rastro físico de lugares onde passei e das coisas que me transformam diariamente”, revela.
Um jeito possível de observar como a fotografia se tornou muito mais que uma forma de registro da nossa trajetória. Ela se transformou, por exemplo, num modo de comunicação. É por meio dessa arte, junto às redes sociais, que comunicamos sentimentos e experiências – algo sempre merecedor de reflexões.
“Percebo que os alunos das oficinas de fotografia, principalmente nas de celulares, buscam entender o processo fotográfico para se comunicarem melhor – com questões, por exemplo, de como fazer uma boa selfie. O que me faz pensar que, numa visão macro, nos deparamos com uma sociedade completamente visual, onde o match numa rede social de relacionamentos se dá primeiramente pelo contato visual com uma imagem que sempre busca demonstrar bem-estar”.
Fotografia como inventário de mortalidades
Relação bastante diferente daquela cultivada por Isabelle Montenegro Lacerda, graduada em Psicologia pela Universidade de Fortaleza. Desde a infância, ela tem o hábito de revisitar álbuns de família. O próprio avô era fotógrafo e a mãe herdou álbuns lindíssimos, iluminados por uma estética que marcou o gosto, o fazer e a forma da cearense – sempre encantada pelas imagens, narrativas e histórias, inventadas ou não, de cada sujeito.
“Talvez por isso tenha buscado a Psicanálise como ofício e, a partir dela, também tenha me envolvido com o campo da fotografia”, suspeita. “A partir desse encantamento, foi possível registrar outras infâncias: as de minhas enteadas (Marina e Marília), de meu afilhado (João Pedro) e de meu filho (Cesar), os quais presenteei com álbuns e de quem sempre fiz questão de produzir registros materializados nesses objetos. Para mim, eles possibilitam viagens, retornos, recontos”.
Isabelle lembra que o avô também tinha por hábito fazer cartões de Natal, nos quais a foto da família era registrada a cada ano e presenteada aos amigos e familiares. Com isso, era possível ver as mudanças do tempo em um clã numeroso – no caso deles, formado por avô, avó, os nove filhos do casal e todos os netos. “Essa tradição também conservo, e registro minha família a cada ano, no Natal, presenteando os amigos queridos com essas fotos”.
Abraçada por esses atravessamentos, Montenegro guarda consigo uma frase da escritora, ensaísta, cineasta, filósofa, crítica de arte e ativista americana Susan Sontag (1933-2004): “A fotografia é o inventário de mortalidades”. Inclusive foi por meio da sentença que a cearense desenvolveu um trabalho fotográfico chamado “inventário de esquecimentos”.
Temáticas como memória e esquecimento são esmiuçados no projeto, bem como a ação do tempo sobre fotografias transmutadas pela grisalha do tempo. Cores que esmaecem, manchas que surgem, fungos, ranhuras, rasuras e mesmo traças e cupins. Numa auto-definição rápida, Isabelle assim se descreve: “Busco a raiz de tudo, o coração das coisas, trama, urdidura e miolo do verbo, dos objetos, das imagens e do juízo”.
Integrante, desde 2019, do Coletivo de fotógrafas cearenses Sol para Mulheres – além de participar da residência artística “O álbum é a Obra” – a fotógrafa, portanto, desenvolveu habilidades para transformar metáfora em imagem por meio da fotografia.
Para Tomaz Maranhão, infelizmente carecemos de grandes ações voltadas diretamente para a revelação e impressão fotográfica, o que torna difícil a reflexão e a compreensão sobre a importância desse tipo de fotografia para grandes públicos. Sob outro espectro, ele comenta a respeito de uma oficina realizada no local onde trabalha, o MFF.
“Ela tem como artifício a produção de um álbum fotográfico simples, com registros que os alunos enviam durante a inscrição. O objetivo é fazer refletir acerca da importância da fotografia impressa e do álbum fotográfico. Acredito que nosso papel é de, principalmente, tomar lugar nessas oportunidades e aproveitar nossa rede para difundir”.