A Jamaica é aqui. Pelo menos é o que atesta a efervescente cena dedicada ao reggae em Fortaleza. Para além do forró, a Capital vivencia um grandioso momento de mergulho em um dos gêneros musicais mais celebrados do mundo. Herança de ícones feito Bob Marley (1945-1981), Peter Trosh (1944-1987), Alpha Blondy e Jimmy Cliff.
Key L’Amour, Assun, Maria Paula e Gomes Brasil também integram esse panorama. Eles e mais uma dezena de artistas participam, nesta sexta-feira (1º), do #ReggaeDayFortaleza, em celebração ao Dia Internacional do Reggae. Na programação, fórum, coquetel e vários shows tratarão de estender o legado africano em nosso meio por meio da nação rasta.
A bem da verdade, a Capital é reduto do reggae não apenas em trabalhos e projetos, mas igualmente em estabelecimentos. Os points atuais de quem curte a sonoridade – com proeminência sobretudo no litoral – são a Kingston 085, Reggae Clube, Jamrock e diversos outros locais encontrados da Praia do Futuro ao Cumbuco.
“É um estilo de vida. Ponto final. Ferramenta poderosa na luta contra toda a desigualdade e brutalidade, contra os semelhantes e a vida de todas as formas”, sintetiza a cantora, compositora e escritora Key L’Amour. Paulistana no Ceará, ela tem contato com o reggae desde os 11 anos de idade, quando viajou para Belém do Pará – terra natal da mãe.
Na ocasião, influenciada por uma tia, conheceu a música do cantor e compositor Edson Gomes. “Estava de férias na cidade, foi amor real. Obviamente já tinha escutado músicas do grande mestre Bob Marley, mas foi a partir daí que brotou um afeto pelo gênero e a identificação, que tocavam de maneira distinta em meu coração. Eram os anos 1990”.
Daí para começar a compor no estilo foi um passo. Aos 15 anos, Key se valeu do reggae para lidar com situações delicadas – a exemplo do divórcio dos pais. A sonoridade sempre a conectou à espiritualidade. Hoje, ela tem dois reggaes lançados nos streaming de música: “Imprevisível” (2020), presente no EP “Poesia em Mim”; e “Zion (Riddim Pura Vida Brasil)”, feita em parceria com a Freedom Sounds Canoa Quebrada, no ano passado.
No último mês de março, fez o primeiro show em Fortaleza, no Cuca Barra do Ceará. O tema foi “As Diversidades Do Ser”, dividido em três blocos. O segundo contou com alguns dos reggaes da artista que ainda não foram gravados, contudo dotados de forte mensagem – a exemplo de “Dislexia”, “Roupa Suja”, “Sentidos”, dentre outras.
Para ela, a principal característica do reggae é a crítica social, envolvendo questões sobre desigualdade, preconceito, fome e outros problemas sociais. “O que mais temos no Brasil não é mesmo? Sempre atual”, sublinha. Questões religiosas também são importantes. A religião Rastafari, por exemplo, tem as próprias ideologias e práticas, mas é um assunto polêmico. Key se pergunta: “Onde estaria a liberdade se a catalogássemos de modo a universalizar e enquadrar as crenças numa verdade absoluta, sendo que deve ser individual?”.
“Precisamos trazer à tona o verdadeiro sentido do Reggae. Além de falarmos sobre o respeito que se deve aos artistas; as oportunidades para expansão; e a propagação da mensagem libertadora que esse gênero traz. Cantamos sobre amor, paz, igualdade, liberdade, respeito e outros valores fundamentais. É triste ver que muitos cantam, tocam, curtem o estilo, mas não vivenciam de fato o que estão propagando”.
Em suma, há mais força representativa quando o objetivo é viver a filosofia Reggae, e não apenas se beneficiar dela. O Dia Internacional dedicado ao gênero musical – inspirado por Winnie Mandela (1936-2018) durante a visita oficial à Jamaica em julho de 1991 com o marido, Nelson, logo após a libertação dele da prisão – chega para reconhecer o poder dessa arte, hoje reconhecida como Patrimônio Cultural da Humanidade. “Em dias assim, se faz necessário lembrarmos de toda força que nos move”.
Em Fortaleza, reggae é mistura
Embalado pela mesma energia, o professor, cantor e compositor Assun situa que o reggae é pele preta, trabalho e exaltação. Na capital cearense, de forma específica, cabe considerar a mistura tão pungente. Há inúmeras referências que influenciam a forma de compor. Essas nuances, porém, também passam pelo lugar de ritmo periférico, do gueto e que luta pelo fim da repressão e por direitos iguais.
“Como o reggae é um ritmo originalmente criado por pretos e pobres, ainda é muito discriminado e tirado de contexto. Minha luta e a de outros artistas nacionais e internacionais é levar a mensagem de paz, amor e união, sem julgamentos e sem discriminação, seja ela racial ou social”, defende o artista.
Assun já foi integrante da banda Tia Maria. Hoje, dedica-se ao trabalho solo e ao grupo que faz releituras de reggaes nacionais e internacionais em ritmo de samba. Segundo ele, ainda existe um grande público que frequenta as festas e eventos. O que mudou foi a configuração. Antes, havia bandas e DJs; agora, na maioria, apenas DJs.
Ao mesmo tempo, enquanto novas casas vão delineando o estilo contemporâneo da sonoridade, outras – a exemplo da Bicho-Papão, na Praia de Iracema – encerram os trabalhos. O vigor, contudo, permanece. Assun persegue o reggae desde os 13 anos, quando um amigo maranhense trazia os últimos lançamentos em CDs.
Mas somente aos 16 o som o pegou de jeito. Foi quando ouviu “Dreadlocks the times is now”, disco clássico da banda jamaicana The Gladiators. “A partir daí, só me aprofundei mais na música e na cultura. Aos 19, montei minha primeira banda de reggae, Tia Maria, onde tive a oportunidade de ir cada vez mais me profissionalizando”, comemora.
“Precisamos sempre celebrar as conquistas. Acompanho alguns artistas daqui, mas atualmente não posso deixar de falar da banda OutraGalera. Além de muito atual no que diz respeito ao que está sendo produzido pelos contemporâneos jamaicanos, o grupo tem uma energia que não dá pra explicar. Estão com milhares de plays no Spotify e sugiro, pra quem não conhece, ouvir o disco ‘Original Fortal’”.
Cor, amor e paz
Maria Paula também pode ser incluída nesse cenário de louvor ao reggae. A cantora está envolvida em vários trabalhos contemplando o gênero – de shows em casas a apresentações durante passeios de veleiro na orla da Capital. Iniciativas no interior, em festivais, lives, clipes e até participações de cunho internacional complementam o rol de atuação.
“Hoje, tenho minha banda, canto tudo que eu gosto e do meu jeito. E, graças a Deus, meu repertório tem agradado por onde eu passo. Da criança aos mais velhos, todo mundo curte o meu som”, vibra. Pudera: Maria trabalha mais com versões. Gosta de escolher músicas aleatórias e misturar com o reggae, criando um som único. É investir na criatividade, fomentando algo novo, mas sem esquecer as raízes.
Conforme percebe, o público aceita muito bem a sonoridade, principalmente no litoral. Ela cita a Kingston 085 como um lugar que faz a diferença na cena, investindo em uma boa estrutura para acolher de forma segura os amantes do reggae music. Maria Paula, porém, é atração fixa na Toca do Plácido, onde canta todas as quartas-feiras.
A tradição é fruto de dedicação. Desde pequena, a artista escuta muito reggae, mas nunca com a visão de que um dia iria trabalhar com música. Quando começou no cenário, não foi direto ao reggae, porém, de fato, se encontrou nele. “Minha atuação nessa área sempre foi de modo muito despretensioso. Trabalhava com outras coisas – fora a música – e hoje, de fato, vivo disso. É um chamado mais forte que eu”.
“Reggae é vida, cor, amor, paz, natureza e, para alguns, um estilo de vida. Pra mim, é mais que um estilo ou gênero. O reggae me traz força pra vencer e lutar pelo meu espaço, me dá voz e autonomia de fazer o que eu gosto e sei fazer”.
Por sua vez, quanto à comemoração do Dia Internacional do Reggae em Fortaleza, a cantora é enfática: “Vai ser um momento pra reunir os amantes do reggae na Capital e fazer valer a pena para que a cena não morra. O reggae não merece ser apagado! Aqui tem muita história a ser contada e vivida!”.
Liberdade pra dentro da cabeça
Veteranos feito Gomes Brasil atestam isso. Aos 48 anos, o vocalista da banda Nativa – outrora integrante da Rebellion, participante da banda Donaleda e fundador da Okolofé – analisa que o desenvolvimento do reggae no Brasil ainda não é o desejado por quem é do meio. Os artistas passam por muitas dificuldades e preconceitos.
Por isso, reivindicam melhorias em amplos aspectos. Durante o #ReggaeDayFortaleza, essas questões serão debatidas no Fórum do Reggae Cearense. Às 17h, no Porto Iracema das Artes, músicos, produtores, empresários e agentes culturais que movimentam o reggae no Estado instituirão a ação, na qual serão discutidos assuntos a fim de gerar melhores oportunidades aos artistas e apreciadores do ritmo.
“Estrutura, contratos, cachês, tudo precisa ser melhorado e será analisado. O grande foco é criarmos pautas para o desenvolvimento da nossa música reggae”, detalha Gomes. “Aqui em Fortaleza temos algumas das melhores bandas de reggae do Brasil, cada uma com sua particularidade, mas sempre com aquele toque jamaicano”.
Bandas e grupos também não faltam por aqui. Rebellion, Donaleda, Andread Jó, Banda Nativa, Tocaias Band, Mr. Bobby, Natividade, Band, e o pioneiro do reggae na Capital, Gianni Zion, entre outros. Vários DJs também se inscrevem no panorama: Rubinho Star, Mr. Gazos e Canuto Lion integram o time com diversidade de nomes.
“O Dia Internacional do Reggae deveria ser celebrado com o maior festival de reggae da cidade, incluindo todas as bandas – das mais antigas às mais recentes – e todos os DJs”, torce Gomes, há 37 anos com o gênero nas veias. “Reggae é poder expressar a liberdade e o amor”.
Serviço
#ReggaeDayFortaleza – Comemoração do Dia Internacional do Reggae em Fortaleza
Nesta sexta-feira (1º), iniciando com o Fórum do Reggae Cearense, às 17h, no Porto Iracema das Artes (Rua Dragão do Mar, 160, Praia de Iracema. Acesso gratuito. Às 20h, show #ReggaeDayFortaleza, na Kingston 085 (Rua José Avelino, 508, Praia de Iracema). Ingressos: R$30 antecipado (por meio deste site); R$40 no local. É obrigatória a apresentação do passaporte de vacinação das três doses contra Covid–19.