Filme 'Currais' expõe vestígios de campos de concentração no Ceará

Longa tem lançamento nacional nesta quarta-feira (23), na Mostra de Cinema de Tiradentes

O sertão cearense ardia em 1932 diante da estiagem que assolava a região. Para os moradores, havia poucas alternativas: seguir a luta da sobrevivência sem saber quando teriam um alento ou partir rumo ao destino desconhecido para municípios maiores, sobretudo para a capital, Fortaleza.

A longa jornada dos refugiados culminou na criação de campos de concentração, fundados por governantes da época. A justificativa era de promover empregos, em fábricas e obras públicas, como as das estradas de ferro, e sustento para os diversos grupos.

Contudo, os espaços também atuavam como principal meio de impedir a entrada de um grande número de flagelados nas cidades mais desenvolvidas do Ceará.

Partindo na direção contrária, os diretores fortalezenses David Aguiar e Sabina Colares refizeram o caminho dos flagelados da seca à procura de indícios desses espaços, que, além da capital, existiram em Senador Pompeu, Quixeramobim, Crato, Cariús e Ipu. Além de outros centros que tiveram a instalação de minicampos.

Esse levantamento histórico resultou no documentário "Currais", que será lançado nesta quarta-feira (23), na 22ª Mostra de Cinema de Tiradentes, em Minas Gerais.

O longa-metragem é conduzido pela história do personagem fictício Romeu (Rômulo Braga).

"Ele é filho de um remanescente do campo de Senador Pompeu que está estudando fora quando sabe da morte do avô e volta para Fortaleza. Romeu, então, se depara com vários relatos e fitas cassetes que o avô guardava", conta Sabina.

As narrativas de testemunhas reais são alinhavadas pela trajetória do protagonista. O interesse para rodar o filme foi estimulado anos antes pelas raizes genealógicas de David.

"Minha família, e sobretudo meu pai, é do interior e sempre tive contato com as histórias. Ele falava de mortes que ocorreram, da seca de 1915, contava muitas histórias que ele chegou a escutar", relembra o passado do pai em Inhamuns.

O documentário percorre as vivências de José Maria Tabosa, morador do Grande Pirambu. O pai dele foi um dos refugiados presos em Fortaleza e José chegou a frequentar o reduto.

Para o diretor do filme, Tabosa simboliza o impacto dos campos de concentração que reverbera até os tempos atuais. "O próprio José Tabosa, que teve a família jogada no Pirambu, acaba tendo que, na década de 1970, principalmente sobre o regime militar, ser expulso da comunidade, dessa vez pela especulação imobiliária".

"Esse mesmo homem, cujo pai sofreu com a organização dessa elite e dos militares, foi preso na ditadura e torturado. Ou seja, percebe-se o ciclo do retorno", completa.

Pesquisa

A equipe cinematográfica dedicou quatro anos de investigação para a construção do longa. Um dos recursos essenciais para alicerçar a produção foi a Caminhada das Almas, que acontece anualmente em Senador Pompeu.

"Os moradores da cidade e áreas próximas, principalmente do Sertão Central, acreditam que os mortos dos campos de concentração na barragem do Patu tornaram-se milagrosos", explica David.

As viagens auxiliaram na descoberta de uma série de personagens que viveram à época ou tinham uma narrativa oral de pessoas que conheceram os campos de concentração. Somaram-se, então, pesquisas bibliográficas e levantamento de arquivos, como fotografias.

O documentário apresenta ainda o relato da última remanescente viva de um campo de concentração em Senador Pompeu, dona Francisca Mourão.

Condições degradantes

Os campos de concentração são descritos pelos diretores como ambientes insalubres, um depósito de pessoas.

"O Pirambu, segundo o próprio (interventor federal do Estado) capitão Carneiro de Mendonça , era o campo modelo. Ele era cercado, as casas eram feitas de palha. As pessoas dormiam no chão ou em redes improvisadas. Não havia uma proteção maior do que isso. Realmente eram uns grandes barracões feitos de zinco, palha e nas condições mais precárias", detalha David.

O diretor acrescenta que havia assistência médica, mas muito aquém do necessário. "Sempre tinha um hospital, mas em um determinado campo, você tinha um corpo médico formado por seis pessoas para cuidar de oito a 10 mil pessoas, como chegamos a ver em um relatório produzido pelo Governo Federal".

Ao chegar aos espaços, os concentrados tinham as cabeças raspadas devido uma epidemia de piolho.

"Muitas vezes, em alguns locais, como em Senador Pompeu, nós ouvimos relatos de que eram colocados em roupas de saco e numerados, que seria uma forma de administrar melhor", detalha o diretor de "Currais".

A prisão não era regra em todos os campos de concentração, mas, aos rebeldes ou fugitivos, foi instalado um equipamento de tortura nomeado de sebo.

"Os que entrassem em algum conflito com a administração eram aprisionados no sebo, que era um local cercado por uma madeira alta, mas completamente ao relento. Eles pegavam esses rebeldes, batiam até eles ficarem extenuados e os jogavam ali, ao sol".

Não é possível precisar quantas pessoas passaram pelos espaços, que duraram até 1933. Os dados da época apontam desde 75 mil cativos, divididos entre os sete campos de concentração, até 200 mil, com base em um discurso do então presidente do Brasil Getúlio Vargas. O desencontro estatístico não é por acaso, explica David. "É um número muito difícil de dizer, porque o apagamento histórico tratou, exatamente, de eliminar isso. A quantidade de mortos é um dado ainda mais complicado de se afirmar".

Cinema

O filme "Currais" foi uma das produções contempladas pelo projeto de incentivo à cultura Rumos Itaú Cultural (2015-2016) e pelo XIII Edital Ceará de Cinema e Vídeo (2016). Antes mesmo do lançamento, a diretora Sabina Colares comemora a ansiedade de variados públicos, com quem já teve contato, em relação à estreia. E revela planos para chegar aos cinemas. "A gente tem expectativa, fora dos festivais, para exibir em sala comercial".