3 de março de 1963. Madrugada na Cinelândia, Centro do Rio de Janeiro. Um homem cai do terceiro andar. José Nogueira é repórter e agoniza na rua em frente ao prédio. O óbito acontece 10 dias depois. O caso é encerrado como “acidente”. Estamos em 2010. O historiador Raphael Alberti acessa arquivos de uma Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) ocorrida nos anos 1960. “O assassinato de um jornalista” é citado na papelada.
Surge a revelação. O cearense era o jornalista apontado. A pesquisa prossegue e entrega outro mistério. Na verdade, José Nogueira era um espião. Nascido em Mundaú (150 Km de Fortaleza), ele atuava como agente do Serviço Secreto da Marinha. Essa trama repleta de suspense, intriga política e violência é contada nas páginas de "Um Espião Silenciado" (Cepe Editora). O livro resulta de uma década inteira de profunda apuração.
3 de março de 2021. Nos exatos 58 anos da “queda” converso com o pesquisador e professor Raphael Alberti. Sem qualquer apoio de bolsa científica, contando apenas com a sorte e os próprios recursos, o carioca decidiu desvendar o enigma José Nogueira. Cruzou Rio de Janeiro, São Paulo, Brasília e Ceará. Encarou a burocracia do Estado brasileiro e ouviu muito “não” de órgãos civis e militares. Sofreu intimidações durante essa jornada.
“Nada que fizeram me fez recuar da pesquisa”, defende Alberti.
A sombra de José Nogueira tomou o cotidiano do escritor. Interessava desvendar quem foi o cearense, as razões do assassinato e os mandantes envolvidos. Como encontrar pistas de um agente secreto? Afinal, como afirma o "senso comum", trata-se de um profissional cuja atuação depende de não deixar pegadas por aí.
Um agente duplo
Por conta do trabalho de conclusão do curso de graduação em História, Alberti chega até José Nogueira. Naquela ocasião, estudava a CPI responsável por apurar ações ilegais do Instituto Brasileiro de Ação Democrática (Ibad) e Instituto de Pesquisa e Estudos Sociais (Ipes). No correr dos anos 1960, estas organizações faziam propaganda anticomunista. Em paralelo, conspiraram pela queda de João Goulart (1919-1976) e ajudaram a compor o golpe militar no Brasil.
Quem foi este cearense? “É um filho da classe média. Seu pai era um delegado. Seu irmão, um sargento da Marinha. Com 18 anos ele vai para o Rio de Janeiro, como reservista da Aeronáutica, e começa a trabalhar com repórter do Diário da Noite. Lá, ele se destaca por conta de uma matéria em torno da 'imprensa marrom’. Esse termo, ‘imprensa marrom’, surge de uma reportagem que ele fez denunciando três revistas que faziam chantagens contra pessoas”, contextualiza o historiador.
O faro investigativo de Nogueira desperta atenção de Joaquim Miguel Viera Ferreira, vulgo “Joaquim Metralha”. A partir desta amizade, o jornalista e militar passa a circular por organizações anticomunistas. Ele se torna redator-chefe do “Tribuna de Notícias”, tabloide patrocinado pela Cruzada Brasileira Anticomunista (CBAC). Participa também de reuniões do Movimento Anticomunista (MAC) e do Ibad.
“Em simultâneo, ele repassa essas informações para políticos progressistas Se aproxima também do presidente João Goulart, do Ministro da Marinha, que era leal ao presidente. Ele acaba tendo esses dois lados de trabalho e fica bem indefinido, assim, as motivações. Se era uma questão financeira ou ideológica. Se era um infiltrado. Isso faz com que o personagem fique mais fascinante ainda”, descreve.
Cena do crime
Alberti devassou artigos dos principais jornais da época. Documentos militares e arquivos policiais. Diário do Congresso Nacional. A principais dificuldades surgiram do desrespeito à lei de acesso à informação. “Um documento que é registrado como ‘ultra confidencial’, o prazo de sigilo é de 25 anos. Ele morreu em 1963, esses documentos já expiraram esse prazo. Mesmo assim, não conseguimos ter acesso. Não temos o tratamento tão transparente”, alerta.
Essa busca solitária possibilitou resgatar um personagem controverso, recoberto por inúmeras camadas. Correndo na navalha, entre esquerda e direita, José Nogueira denunciou a organização criminosa “Ordem Suprema dos Mantos Negros”, versão brasileira da Klu Klux Klan que era presidida por “Joaquim Metralha”.
“Eles atuavam cometendo crimes contra negros e nordestinos”, explica Alberti. Segundo o pesquisador, a questão identitária pesou para José Nogueira. Por ser cearense, ele não compactuava com estas barbaridades. Ele passa a fornecer informações destes grupos à CPI que botava o Ibad contra a parede.
Com "Um Espião Silenciado", Alberti parte do rigor e da pesquisa científica para elucidar os fatos que ocorreram antes, durante e depois daquela “queda” ocorrida em 3 de março de 1963. O historiador apurou as falhas policiais e fez um apontamento das principais pessoas denunciadas por Nogueira, que poderiam ter ordenado ou cometido o crime.
Baseado nos depoimentos dos peritos Brás Itapaci Magalhães (Marinha) e Manoel Seve Neto (Polícia Civil), Alberti contesta a versão de acidente. Nogueira foi lançado a uma distância de 4,10 metros da janela, caindo em posição horizontal do outro lado da rua. Algo suspeito para uma simples queda. Outro ponto de vista é o fato do cearense ter sido torturado antes. O corpo possuía marcas de cigarro na mão esquerda, escoriações nas pernas no braço e hemorragias internas, principalmente nos rins.
José Nogueira foi levado em coma para o Hospital Souza Aguiar na madrugada do dia 3 de março. O Ministro da Marinha, Pedro Paulo Suzano, conseguiu sua transferência para o Hospital Central da Marinha. Ele morre por paralisação dos rins, no dia 13 de março de 1963. "Um Espião Silenciado" argumenta que o cearense foi assassinado e sugere indícios de um crime político.
“Muito me escandalizou quanto tempo essa história foi abafada, já que ele teve participações em momentos centrais da política. Ele sabia de muita coisa, era envolvido em temas polêmicos. Não por acaso, estava em silêncio por quase meio século”, reflete Raphael Alberti.
"Um Espião Silenciado"
Raphael Alberti
CEPE Editora
2020, 137 páginas
R$ 30
R$ 8,90 (E-book)
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