Escultura 'La Femme Bateau', de Sérvulo Esmeraldo, segue em destroços desde 2018

Secretaria de Cultura de Fortaleza aguarda reforma da Ponte dos Ingleses para fazer a reinstalação na Praia de Iracema

Faz muito tempo que “La Femme Bateau” não vê o verde daquele mar quebrar. A escultura, anteriormente firmada nas estacas da Ponte dos Ingleses, foi pensada pelo artista cratense Sérvulo Esmeraldo (1929-2017) para “nos conduzir de 1993 a 1994, com segurança, fantasia, coragem e esperança”. Assim ele a descreveu em uma carta a amigos, na época da concepção. Vinte e seis anos depois, o fortalezense carece da mesma profecia para atravessar 2020, mas a restauração e a reinstalação da “mulher-barco”, resgatada em destroços após ressaca do litoral, em março de 2018, não avança.

Em vídeo recente publicado nas redes sociais, o pesquisador Gilmar de Carvalho, um dos organizadores do livro “La Femme Bateau” (2019), ao lado de Dodora Guimarães, curadora e viúva do artista, provoca uma ação imediata. “Onde é que está a nossa mulher mitológica, a nossa escultura tão querida? Onde é que está o trabalho do Sérvulo, que é um dos maiores escultores do Brasil, um dos mais importantes, criativos, e um dos que deixou o maior legado? Então, isso a gente vai largar? Onde é que ficou e por que não volta?”, questiona. 

Tanto ele como Dodora Guimarães reconhecem que houve um interesse muito grande da gestão municipal na recuperação da obra, há dois anos, mas ambos temem que chegue o fim do atual mandato sem uma evolução para o caso. “Nós temos essa escultura retirada do fundo do mar, graças ao empenho da Secultfor. Mas ela está hoje no espaço que um dia foi a Metalúrgica Santa Luzia, à espera da autorização da contratação do restauro”, detalha Dodora.

Em nota, a Secretaria de Cultura de Fortaleza (Secultfor) afirma que La Femme Bateau “será reinstalada após a conclusão da obra da Ponte dos Ingleses de responsabilidade do Governo do Estado do Ceará”, mas a viúva do artista inquieta-se com essa proposta. “A Femme Bateau é independente da ponte, ela tem vida própria, porque está colocada numa das estacas fora da ponte. Se ela voltar com a estrutura restaurada, maravilhoso. Mas são instâncias diferentes. Ela tem a tutela do município, porque está na cidade e configura um patrimônio de Fortaleza”, defende a curadora.

Reforma 

Em janeiro próximo, completam-se três anos da interdição da Ponte dos Ingleses para reparos na estrutura comprometida pelo tempo, maresia e força das ondas. Somente há dez dias, no entanto, em 9 de setembro, foram recebidos os documentos de habilitação e as propostas comerciais para a reforma, conforme edital aberto pela Superintendência de Obras Públicas (SOP) do governo estadual. 

Em nota, a SOP afirma que ainda não é possível estabelecer prazos de entrega nem valores orçamentários exatos, mas destacou que “o investimento é orçado em aproximadamente R$ 2 milhões, e a execução da obra deve durar seis meses, contados a partir da data da ordem de serviço”. 

Um dos arquitetos responsáveis pelo projeto de reforma da Ponte dos Ingleses, Delberg Ponce de Leon, admite que o plano não incluiu nada referente à La Femme Bateau.

“Nós fizemos o projeto para o espaço da ponte, daquela antiga ocupação, mas aquela ponta lá, eu até confesso, pensei que já estivesse tudo resolvido, mas não tem nenhum vínculo não. Ela (a escultura) pode ser reposta. Inclusive, no nosso desenho 3D, ela está lá no final aparecendo, mas não tem nenhuma referência de orçamento ao nosso projeto, deve ser outra origem a despesa de lá, de recuperação e instalação, outra fonte de recurso”, pontua o arquiteto.

Na visão de Dodora Guimarães, “pouco importa quem vai pagar essa conta. O que a gente quer é o patrimônio de volta”. Ela, que também é presidente do Instituto Sérvulo Esmeraldo, preocupa-se ainda com quem fará a restauração da obra de arte, já que nem todas as metalúrgicas têm experiência com trabalhos artísticos. “Para mim, o importante é que a escultura seja restaurada, funcione e tenha a solução apontada pelo Sérvulo, que seja construída com o rigor que ele dava ao seu trabalho”, destaca. 

Casos

A preocupação da curadora se legitima em situações anteriores. Um exemplo é a restauração de 2016 do “Monumento aos Jangadeiros” (1992), localizado na Av. Beira-Mar, durante obras de requalificação viabilizadas pela Secretaria de Turismo de Fortaleza. “Foi feito um trabalho de quinta categoria, sem nenhum critério, inclusive instalando a escultura de um modo equivocado, porque não teve o acompanhamento do artista, que era vivo na época”.

Conforme Dodora, o patrimônio público teve um prejuízo: “Agora vai ter que se feito um novo trabalho. Vai ser pago duas vezes para consertar um erro. Então, por que não fazer corretamente desde o início?”, indaga Dodora, que já tem um nome de confiança para restaurar "La Femme Bateau", o metalúrgico Ari Josino.

“Eu, como representante do Instituto Sérvulo Esmeraldo, só confio nele para fazer esse trabalho, porque desde o final dos anos 1990, Ari executava as esculturas de grande porte do Sérvulo. Ele conhecia o trabalho do artista por dentro, na construção”, pontua a curadora.

Atualmente, a Secultfor também analisa a viabilidade do restauro das esculturas “Monumento ao Jangadeiro”(1992) e “Monumento ao Saneamento Básico da Cidade de Fortaleza” (1977). Segundo a secretaria, as obras farão parte do Projeto de Reordenação Urbana da Beira-Mar.

“A ação de restauro corresponde à avaliação estrutural, estabilização, remoção de repinturas, higienização, ao tratamento das oxidações e corrosões, à aplicação de enxertos, a nivelamentos, soldas e à finalização com tinta protetiva aos fatores ambientais. Todos esses procedimentos serão devidamente aprovados e acompanhados pelo Instituto Sérvulo Esmeraldo, detentor dos direitos autorais das esculturas”, garante a Secultfor.

Patrimônios

Dodora lembra ainda de outras esculturas do artista presentes na Capital, mas que carecem de um olhar mais cuidadoso por parte do poder público. “Pulsação” (1980), por exemplo, está instalada embaixo do viaduto Antônio Martins Filho, desde 2018, mas se encontra sem movimento há pelo menos um ano e meio. 

Esta e outras três obras de Sérvulo - “Ballet Gráfico” (2003 – Centro), "La Femme Bateau” (1994 – Praia de Iracema) e “Infinito” (1983 – Centro) - foram contempladas pelo projeto “Reconstrução, Restauro e Conservação de Esculturas de Sérvulo Esmeraldo”, em parceria com a Secultfor, em 2017. Desde então, não houve outro movimento.

A curadora lamenta também a situação da escultura “Quadrados”, localizada na entrada do Campus do Pici da Universidade Federal do Ceará desde 1987, mas que foi comprometida com a construção de abrigos de ônibus e da praça Prisco Bezerra, nos últimos anos.

A lista de atenção de Dodora inclui ainda um muro em concreto pintado, no prédio que é da vice-governadoria, e até mesmo obras desaparecidas, caso de um painel Sem Título que ficava na Assembleia Legislativa do Ceará, de um cruzeiro projetado para a Catedral de Fortaleza e de uma fonte que ficava em frente ao Departamento Nacional de Obras Contra as Secas, na Av. Duque de Caxias. A preocupação se repete no Crato, cidade natal do artista, onde as obras “Pirâmides” (2008) e “A Semente” (1995) aguardam restauração.

“É um trabalho constante, de muito empenho e de poucos resultados, infelizmente. Mas, ultimamente, estou vendo um modo de a gente conseguir fazer um tombamento desse conjunto de esculturas que o Sérvulo tem na cidade de Fortaleza. Poucas cidades têm um conjunto tão significativo de um artista só. E cada obra dessa tem uma história, tem um significado, tem um contexto, então há justificativa para isso”, aponta Dodora.

Ela contabiliza pelo menos 40 obras do cratense, incluindo privadas de uso público, só na Capital. “O que eu penso muito: enquanto eu tiver saúde, força e vigor para estar nessa luta, elas contam comigo. Mas quando eu não estiver mais aqui? Uma obra de arte não é feita para 10, 50 anos, é feita para uma eternidade. A gente quer deixar aquele legado. É um marco que fica. É o trabalho de um escultor que dedicou quase 40 anos a construir isso. Foi a obra da maturidade dele”, acrescenta Dodora. Enquanto esse reconhecimento não vem, elas teimam resistindo.