Sabrina sempre se sentiu sozinha por ser órfã de pai e mãe desde criança e ter perdido a avó na adolescência. Nina viaja com a filha para um evento literário e se vê diante de um acontecimento capaz de colocá-la cara a cara consigo mesma. Maria cria 18 animais na pequena casa onde mora e enfrenta a fúria da vizinha por amar tanto os bichos.
Aparentemente tão diferentes, essas mulheres partilham densas camadas de sentimentos, um acúmulo de experiências e perspectivas que se desdobram em esperanças, flagelos, desertos ou pequenas epifanias. Em igual medida, dividem também a força e a resiliência de existirem e enfrentarem um mundo que não as compreende nem as valoriza.
“Como mulher, escritora, mãe e feminista, a escrita é um espaço para desenvolver sobre aquilo que me inquieta, me deixa com raiva e tira o meu sono. O mundo que busca padronizar as mulheres, os corpos, os modos de existir é uma ilusão. É na pluralidade que fomos gerados e é assim que deve ser”, afirma Vanessa Passos, autora de um dos mais recentes lançamentos advindos do solo cearense, o livro “A mulher mais amada do mundo”.
Publicada pela Lua Azul Edições e lançada em versão e-book na Amazon no último sábado (16), a obra reúne 13 contos que descortinam as múltiplas faces e cotidianos do feminino, adentrando em panoramas que vão da periferia à classe A, da magreza à obesidade, do preto ao branco da pele.
Predomina, assim, o diverso em sua quase totalidade, beneficiado por uma tessitura narrativa cirúrgica e as magnéticas ilustrações da artista visual cearense Raisa Christina. Texto e imagem em alinhamento para ressoar uma vastidão de minúcias.
Contramão
Além de apresentar o resultado da intensa observação de Vanessa frente às mais distintas realidades, o livro nasce como um protesto. Diante de um mercado que insiste em permanecer publicando mais homens e obras com personagens masculinos, “A mulher mais amada do mundo” surge em bem-vinda contramão.
“Segundo uma pesquisa coordenada por Regina Delcastagnè, realizada por um grupo de pesquisa na Universidade de Brasília, 70,6% dos livros publicados por grandes editoras são de autores, e 50,8% dessas obras destacam personagens masculinos. Revoltante essa desigualdade, né?”, situa a escritora.
“Eu já tinha vários contos vencedores de concursos literários e antologias, então decidi que estava na hora de publicar meu livro de contos onde o fio condutor não seria necessariamente uma única temática, mas a presença das personagens femininas”, completa.
Desta feita, entram em cena Clarice, Elisa, Maria das Graças, Sabrina, Catarina, Nina e aquelas que, narrando em primeira pessoa, podem ser qualquer mulher e todas ao mesmo tempo: filhas, mães, esposas, avós, companheiras, profissionais, alegres, tristes, insondáveis. Vivas.
A curtíssima extensão de cada história – a maioria não ultrapassa três páginas – demonstra a exímia capacidade da autora de engajar e emocionar o público a partir de uma seleção precisa de palavras e encadeamentos, num profuso apanhado de reflexões.
“Queria escrever algo capaz de nocautear as leitoras e leitores a ponto de levá-los a devorar o livro – como recebi de muitos depoimentos – e voltar para ler e absorver cada história. De fato, emocionar cada um à sua maneira”, explica Vanessa, cuja ansiedade, quadro que vem enfrentando desde 2018, quando sofreu um estresse pós-traumático, compartilha com as personagens.
Em “Pressa para escapar”, por exemplo, os pesadelos e o cansaço da escritora estão ali. Por sua vez, em “Fome”, emerge a compulsão alimentar. No conto “Meu nome era Alice”, ela divide uma experiência com a avó, já falecida – personagem constante em suas histórias –, e assim por diante. Em cada criação, um espectro a mais na miscelânea de “eus” femininos.
Recepção
“A mulher mais amada do mundo” também tem a peculiaridade de se constituir colaborativo. O texto de orelha é de Tércia Montenegro; o posfácio é assinado por Kah Dantas, ao passo que o texto de contracapa é de Marco Severo. Os três, expressivos nomes da literatura cearense, situam a obra como um testemunho largamente humano da necessidade de possibilidades e transformação tendo em vista a condição das mulheres.
O próprio modo de a obra chegar às mãos dos leitores igualmente passou por um processo de parceria. Foram dois meses de pré-venda por meio de financiamento coletivo, em que atingiu 156% da meta, apurando R$ 15.600 para a publicação. No total, foram impressos mil livros com as ilustrações coloridas de Raisa Christina, número que já está próximo de esgotar. Os exemplares podem ser adquiridos com a própria autora por meio das redes sociais (@pinturadaspalavras ou @vanessapassos.escritora).
Enquanto almeja finalizar a última versão de seu romance, “Pedido quase uma prece” – que segue para a pós-produção literária do escritor e crítico literário Sérgio Tavares e teve leitura crítica dos também escritores Paulo Scott e Carola Saavedra – Vanessa colhe os frutos dos acalorados retornos que tem recebido e da busca por alcançar ainda mais pessoas com o livro.
“‘A mulher mais amada do mundo’ é grito que vem convidar leitoras a se perceberem como humanas, em suas fraquezas e suas forças – e como há beleza nisso”.
A mulher mais amada do mundo
Vanessa Passos
Ilustrações de Raisa Christina
Lua Azul Edições
2020, 84 páginas
R$ 50 (incluindo marca-página, cartão postal e frete)