Em novo livro, cearense Marco Severo narra história cortante sobre a complexidade do amor

Lançado durante a quarentena, “Um dos nomes inventados para o amor" apresenta a saga de uma mulher nas ácidas travessias pelo próprio eu

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Marco Severo recorda do momento. Era o começo de 2017 quando uma instigante expressão brotou na mente. “Resolvi comprar as primeiras piranhas quando soube que meu marido havia decidido que iríamos nos mudar para um sítio no interior que eu nem sabia que ele tinha”, proclamava a sentença assim, num fôlego só, direta, sem vírgulas. Feito tornado.

Ali, ele soube imediatamente, nascia uma personagem forte e, pelos elementos que já identificava – o nome, a agudeza na forma de se expressar, a ideia de comprar piranhas – ela narraria uma história intensa. Era Cacilda, protagonista do mais novo livro de sua autoria, “Um dos nomes inventados para o amor”.

Lançada durante a quarentena, a obra – fruto de mais uma parceria do autor cearense com a Editora Moinhos – é uma cortante travessia pelos meandros de uma mulher cujo relato, narrado em primeira pessoa, nos leva a penetrar no núcleo da alma humana.

Muito disso se deve à precisa apresentação da personagem logo nas primeiras linhas da trama, exatamente aquela proposição surgida para Marco há pouco mais de três anos.

“Viver esse tempo com Cacilda me deu a oportunidade de mergulhar mais e mais nessa pessoa. A história desse livro foi primeiro pensada para ser um conto, mas assim que eu comecei a escrever sobre ela, no momento em que a narrativa tem uma ruptura com o presente e eu começo a caminhar pela infância da personagem, compreendi que eu iria adentrar cada vez mais na vida dela porque eu comecei a querer saber quem era aquela mulher”, situa. 

“Eu escrevi para tentar descobrir isso. Se eu consegui? Consegui contar a história de Cacilda, ciente de que, para cada leitor, ela se torna tantas, todas”, complementa o escritor.

Temáticas

O livro atravessa inúmeras questões, a exemplo de abusos na infância, bingos clandestinos, o universo das igrejas neopentecostais, entre outras. A costura é engenhosa, sem rodeios, fazendo com que, rapidamente, as 84 páginas da narrativa sejam desbravadas.

Marco conta que a opção por enfocar em assuntos tão densos deve-se ao fato de estar se reconhecendo cada vez mais como um escritor brasileiro, latino-americano, que ocupa um lugar no mundo dentro das mazelas e dos prazeres do lugar em que vive e interage.

“Assim, tenho buscado cada vez mais escrever sobre nossas próprias agruras, para além da miséria humana, como forma de tentar compreendê-las e entender quem nos tornamos a partir delas. Não proponho soluções porque isso não me cabe. Proponho um escancaramento do esgoto, um espraiamento do fedor e, se possível, jogar algumas pessoas ali dentro para que possamos abrir os olhos”, diz.

Desenvolver esses recortes, então, sobretudo na perspectiva de uma mulher, aconteceu porque são os caminhos de Cacilda, bem como os passos de tantas outras mulheres, impelidas ao abismo pela força da cruel realidade.

“É um cenário que se impõe como um Golias sem David, um Golias que avança sobre formigas, pastos, ovelhas e sai sempre vencedor. Eis o cenário da América Latina, que, aos poucos pode começar a mudar, mas é preciso que comecemos a olhar para os perigos e os absurdos com os quais nos acostumamos. Não é possível que continuemos a normalizar o absurdo”.

Complexidades

E sobre o amor? Qual pode ser um dos nomes inventados para ele, conforme anuncia o título da obra? Marco diz que a trama narra os percursos de alguém com uma forma enviesada de entender o sentimento.

Não à toa, Cacilda caminha temerosamente num (des)equilíbrio, em que confunde as lacunas afetivas com a urgência do afeto que lhe foi negado. Quer ser amada a qualquer custo, e acredita, talvez, que uma possível estabilidade no amor será capaz de lhe devolver a algum idílio possível, lugar onde ela nunca esteve – exceto em desejo.

“Para expressar o que a personagem representa, coloquei-a em situações-limite, em que o crescimento viria de fora para dentro, imposto a ela através das vivências a que se submetia ou às quais era submetida. Essa tensão entre forças opostas faz com que ela acabe agindo de modo a cair sempre na situação seguinte. E é aí que Cacilda devolve ao mundo aquilo que recebeu dele a vida inteira. Seus alicerces são todos baseados naquilo que ela entende que lhe foi negado”, contextualiza o autor.

O resultado dessa abrangente perspectiva é uma protagonista que representa as ausências, as lacunas, e como o nosso lidar com as circunstâncias da vida, com o outro, pode estar muito ligado ao nosso estar no mundo e em como o entorno se instala dentro da gente.

Recepção

Mais conhecido por escrever crônicas e contos, Marco Severo, desta vez, com “Um dos nomes inventados para o amor”, engendra no gênero novela. “Percebi que esse também é um caminho possível. Ver Cacilda chegando aos leitores, caminhando, seguindo sua própria vida em livro, é uma dádiva”, comemora.

No próximo ano, ele deve publicar uma nova obra, sua primeira de realismo mágico. Nela, conta a história de uma cidade – inventada pelo autor – ao longo de 300 anos. Também está escrevendo uma nova novela e um livro de crônicas.

Até lá, colhe a ótima recepção do último lançamento. “Muito para a minha sorte, a resposta da crítica e dos leitores têm sido bastante positiva. Agora, começam novamente a pedir que eu escreva um romance, o que não vai acontecer porque gosto imensamente das formas breves: conto, crônica, novela, teatro”.

Independentemente do gênero, que venha o próximo projeto.

Um dos nomes inventados para o amor
Marco Severo

Moinhos
2020, 84 páginas
R$ 40