No começo, não havia sequer luz no planeta. Tudo era breu e mistério. Daí que vieram as lâmpadas, os postes, os fósforos. Clarearam tudo. Daí que criaram também os refletores que iluminam outdoors. Naquelas telas sustentadas por armações entranhadas nas calçadas, eles destacam corpos de modelos, lançamentos automotivos, os últimos lanches da moda. Eles aclaram o que leiloa a felicidade.
Nos últimos meses, porém, o tom dos cartazes é outro. Outras coisas se iluminam. Saem as ofertas do varejo, entram as urgências da pandemia. Há que se lavar as mãos. Há que se evitar aglomerações. Há que se usar máscaras.
Entre os cearenses, cabe destacar, é sortido o arsenal dessas telas de proteção da boca, do nariz e da vida: multicores, de tecido, N95 ou PFF2. Existem as que fazem menção a super-heróis e outras que até encenam uma boca diferente da original de fábrica. Uma fartura.
Vendidas nas lojas e sinais, farmácias e portas de casa, por trás delas não é possível enxergar nada. Opaca é a visão do sorriso, bem como o gosto que fica por não ser possível visualizar a alegria da maneira que nos ensinaram: dentes à mostra, mandíbula aberta para os lados, vastidão de saliva coberta pelos lábios.
Entretanto, como já escreveu James Baldwin (1924-1987), recriamos com base na desordem da vida. O jeito para exaltar a existência diante de tanto caos, assim, é outro. Sorrimos com as pupilas, os cílios fazendo de guarda-chuva para abraçar a ligação que parte do coração e chega aos olhos. Sorrimos, da janela, com cabelos esvoaçando ao vento, vontade de liberdade que não passa. Sorrimos.
Sorrimos - a boca escancarando a vontade de divórcio com o entorno dolorido e estranho - porque, apesar de tudo, a vida pede coragem. O sentimento do mundo que tantas Fortalezas, cidades inteiras dentro de um território uno, quer portar - e portar com plenitude.
Vontade que acompanha as crianças, por exemplo, tanto das margens como dos centros: quando sorriem, elas desenham outras cartografias de possibilidades, fazem novas histórias com o semblante. É como se dissessem, rodopiando em ciranda: "é tudo que tenho para aguentar tudo".
Expressão que atravessa também quem passa pela orla e tem desejo de mar, assim como quem adentra as ruelas das comunidades e se embrenha por entre pequenos lares repletos de tanto. Quem faz do contato com o verde sinal de recomeço. E quem sobrevive do próprio negócio levando beleza em forma de pipoca. Uma ânsia coletiva: respirar novamente feito outrora. Sorrir como tem que ser.
Máscaras cobrem a boca, mas não interrompem ternuras. Nos foi tirado o abraço, o toque, a pele; a presença, não. A força, não. E ainda sobrou o restante - que é muito e tão pouco. Contudo, é por meio dessa parcela quase ínfima de novidade, de comunicação, que re-existimos. Sorrimos, apesar de tudo. Sorrimos.