A popularidade das histórias em quadrinhos costuma ser creditada ao universo dos super-heróis. Ao longo das décadas, estes seres ficcionais solidificaram a dita "nona arte" nos mais longínquos pontos do Planeta. Mesmo massiva, boa parte dessa produção conseguiu catalisar leituras sociais do tempo em que foram idealizadas.
Entretanto, existe um rico universo de narrativas para além do modo DC e Marvel (para citar as mais conhecidas) de fazer gibis. Causos da vida, banalidades corriqueiras, situações comuns e ordinárias do cotidiano podem ser combustível à mente dos profissionais envolvidos no ramo.
Histórias mais intimistas e focadas nas vivências de pessoas de carne e osso também são material para roteiristas e quadrinistas.Para quem publica na raça, sem apoio financeiro algum, os chamados "independentes", a liberdade do traço autoral e a dedicação por experimentar são ingredientes poderosos.
Quem reforça as fileiras do quadrinho independente e voltado a explorar narrativas reais é a autora cearense Brendda Maria. Depois de "Manual de Sobrevivência à Vida Adulta" (2016), a ilustradora retorna com outra obra voltada a desfiar temas do dia a dia.
Com "Cais do Porto", a quadrinista divide os 10 anos de paixão, perrengues e apreço pela urbe alencarina. Entrega uma delicada obra, dedicada a refletir temas como a amizade, escuta ao próximo, apoio psicológico e os efeitos da cidade nas individualidades dos moradores.
Trama
Acompanhamos as amigas Clara e Gi, que se reencontram por acaso após cinco anos sem contato. O encontro acontece em uma parada de ônibus. A dupla encara a linha "Cais do Porto", uma referência ao ônibus que liga a Barra do Ceará à zona portuária de Fortaleza. No trajeto, as amigas dividem os dramas pessoais e as pequenas conquistas.
O mundo anda bem diferente dos anos em que eram vizinhas no bairro Parquelândia. Lá fora, a cidade é um personagem contumaz e emoldura os pensamentos das meninas. Se a "verdade está lá fora", estas ruas também possuem amor, sororidade e luta por dias melhores.
Produção
O trabalho começou a ganhar forma em 2018. À época, Brendda dividia com uma amiga impressões em torno da mobilidade urbana de Fortaleza. Das coisas estranhas desse lugar. Por exemplo como, mesmo no caos do trânsito, todo mundo acaba encontrando algum conhecido.
Foram 100 dias de desenho e colorização. Entrevistas com pessoas próximas, fotografias e checagem de informações só ajudou na construção do roteiro. A dedicação é perceptível em cada página.
"Quando terminei de desenhar e colorir 'Cais do Porto', me senti muito mais próxima de mim e dos amigos que me ajudaram a fazer o quadrinho. É como se eu tivesse absorvido as experiências deles, misturadas com as minhas, para criar essa narrativa", detalha a quadrinista.
Ler outras mulheres
Natural de Aracati, a criadora resgata que o amor pelos quadrinhos despertou na leitura de tirinhas de jornal. Tempos depois, foi a vez de "Sandman" e as histórias da Batgirl escritas por Gail Simone. Já moradora de Fortaleza, por conta dos estudos em Design de Moda, dedicou-se ao desenho. Nesse intervalo, acontece em 2012 o boom dos autores independentes brasileiros.
O "Zine XXX", publicação com várias histórias de autoras mulheres foi decisivo. "Foi aí que eu decidi arriscar e começar a contar histórias a partir do que eu observava no universo de pessoas que eu conhecia, na minha relação comigo mesma, com meus sentimentos e com a cidade", afirma a realizadora cearense.
A produção de Brendda é dedicada e investe na perspectiva feminina. Reforça a importância da voz autoral de mulheres, diante de um mercado de quadrinhos dominado por homens. "Cais do Porto" evidencia a pluralidade das HQs criadas, atualmente, no Ceará.
"Aqui, se produz quadrinho de terror, aventura, cotidiano, em formatos acessíveis para o público e cada vez mais representativos para mulheres e LGBTQ+.
Apresentamos o meio urbano, a forma como nos conectamos ou não com a religião, como falamos, como criamos universos. Hoje, não consigo mais desassociar Fortaleza do meu trabalho", conclui Brendda Maria.
"Cais do Porto"
Brendda Maria
2019, 56 páginas
R$ 20
Vendas aqui.