Antes de começar a frequentar a escola, cadeira em frente à lousa para aprender o bê-a-bá, Guilherme dos Reis já sabia que seu caminho seria feito de livros. Desde os três anos de idade, une letra com letra para mergulhar no mistério do mundo. Estar entre palavras tão cedo permitiu-lhe enxergar que o conhecimento não somente faz bem como é extremamente necessário, sobretudo em territórios de vulnerabilidade social, a exemplo do lugar onde reside.
Morador do Ancuri, o estudante de 18 anos faz do bairro, localizado na periferia da capital cearense, a sede do projeto Doe Livros Fortaleza. A ação teve início em junho do ano passado – logo, nos primeiros meses de incidência da pandemia do novo coronavírus no Ceará.
Tudo surgiu a partir de uma inquietação de Guilherme: como os jovens de sua idade poderiam se preparar para o Exame Nacional do Ensino Médio (ENEM) se até o básico para estudar estava faltando?
“Vendo algumas estatísticas em sites, reparei que mais de 30% dos domicílios cearenses não possuíam acesso à internet, ou seja, quase a metade das famílias do Estado. Surpreso pela quantidade tão expressiva, comecei a me questionar o que fazer para driblar essa situação. Não poderia ficar com os braços cruzados, esperando a solução cair do céu”, conta.
Unido a duas amigas, Lívia e Kelly, o adolescente iniciou, assim, uma mobilização em torno da doação de livros – fossem didáticos, paradidáticos ou até apostilas – a partir do apoio da população da cidade. Neste momento, de forma a auxiliar na logística do projeto, a ação já conta com 14 voluntários e mantém um perfil no instagram, por onde é possível os interessados se conectarem a fim de realizar as doações.
A equipe à frente da iniciativa também está tentando desenvolver uma plataforma na web e um aplicativo para otimizar o acesso aos livros, bem como para proporcionar bem-estar ao público leitor. Auxiliar no controle de armazenagem das obras também emerge como necessidade.
“O projeto conta ainda com a implantação de uma biblioteca comunitária, no bairro Ancuri. O espaço objetiva democratizar o acesso ao livro e incentivar a importância da leitura, podendo, assim, contribuir diretamente na formação e no desenvolvimento cultural de mais pessoas”, destaca Guilherme.
Livros para todos
Num cálculo rápido, o estudante estima que mais de três mil obras já foram recebidas e doadas, tanto para alunos quanto para instituições culturais ou de ensino, beneficiando cerca de 300 pessoas. No depósito onde são mantidos os títulos, outros quatro mil exemplares aguardam novas mãos, mentes e olhares. A fim de preservar o bom estado dos objetos, Guilherme agora está solicitando a doação de estantes. “Por conta das chuvas, é bem provável que os livros morfem”, situa.
Quanto ao foco das doações, o público para o qual são destinados os títulos é abrangente. Porém, o projeto busca contemplar, de modo mais enfático, pessoas que precisam e querem estudar, mas não possuem os materiais adequados; ou, simplesmente, aqueles que são apaixonados pelo universo literário e por múltiplos saberes.
“A leitura e a informação transformam, libertam. São uma forma de refúgio diante de todas as opressões, situações difíceis e ameaçadoras. O projeto tem como princípio despertar nos jovens e nas crianças o prazer pela leitura, pela informação, construindo valores que a sociedade, com suas tantas mazelas, nos rouba a todo instante”, sublinha Guilherme. “Já dizia o saudoso Mário Quintana: ‘O verdadeiro analfabeto é aquele que sabe ler, mas não lê’”.
Igualmente atuando como escritor, o adolescente, para além de tocar o projeto, exerce o posto de Jovem Agente de Direitos Humanos pela Ordem dos Advogados do Brasil (OAB - CE) desde 2014. Um dos maiores desejos dele, contudo, é se tornar jornalista. “Acho que é uma vocação, não me vejo fazendo outra coisa”, confessa.
Vontade de transformação
Quando questionado sobre os sonhos que carrega consigo, Guilherme dos Reis volve o olhar para a realidade em que está inserido. Onde faltam investimentos do poder público para prover dignidade, sobram atitudes de entrega e dedicação.
“Quero desenvolver centros de assistência social nas comunidades, com o apoio da Prefeitura de Fortaleza, para pessoas em situação de vulnerabilidade social. Das comunidades saem as grandes ideias. É o lugar da potência. Está faltando esse apoio”, percebe. “Feito isso, acredito que o quadro de desigualdade poderá ser modificado na cidade”.
Mudança que começa miúda, é verdade, a partir do simples contato com as pessoas que chegam até ele, tanto para doar quanto para receber os livros do projeto. Mas é ali, naquele movimento de ternura compartilhada, que ojovem enxerga um futuro diferente.
"Me sinto grato e honrado ao mesmo tempo. Apesar de ser um trabalho árduo, é muito prazeroso. O sorriso de uma criança e de um adolescente que recebe as obras não tem preço que pague. As pessoas ficam impressionadas pela atitude, parabenizam. Isso tudo é muito empolgante”, conclui.
Serviço
Projeto Doe Livros Fortaleza
É possível doar ou solicitar a doação de obras por meio do perfil @doelivros_fortaleza, no instagram
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