De volta a Fortaleza, tecelão cearense Alexandre Heberte partilha experiências no tear

A convite da Casa Bendita, espaço cultural recém-inaugurado na cidade, Alexandre conduziu uma oficina de três dias na última semana em Fortaleza

"Você sabia que eu matei meu marido?", provocou uma mulher no Capão Redondo. Ela se dirigia ao cearense Alexandre Heberte, artista natural de Juazeiro do Norte, que mora há 15 anos em São Paulo, e atravessa a própria vida entre o Nordeste e o Sudeste do Brasil. "Ela queria saber minha reação. Chamei pelo braço e disse: pois gata, sente aí e já me conte que eu vou tecer aqui um pouquinho". Foi com o tear que ele aprendeu a reagir aos próprios problemas, por que seria diferente com os outros, então?

Paixão que chegou depois dos 30 anos, a arte manual da tecelagem encontrou Alexandre quando os pais dele, Seu Tico e Dona Graça, ainda não sabiam se a escolha do filho de voar para mais longe ia fazer com que ele se perdesse ou se achasse. Os dez anos em Fortaleza, vividos entre 1991 e 2001, não tinham dado muita perspectiva ao garoto. Ainda assim, resolveu que passaria só mais dois anos no aconchego de casa, no Cariri, para, então, tentar a vida em São Paulo.

Na capital paulista, começou a desdobrar-se entre um curso de tecnólogo de turismo e um emprego numa loja de produtos místicos e esotéricos que vendia para todo o Brasil. Até que, num dia qualquer, o convite de um amigo para conhecer a residência de outro colega mudou o rumo de Alexandre.

O apartamento de José Donizete tinha praticamente um cômodo só. Metade dele era ocupada por um tear imenso e a outra metade guardava todo o resto que cabia: geladeira, cama, fogão... O cearense, que nunca tinha visto a ferramenta naquela proporção, viajou em suas memórias na tentativa de recuperar o que sabia sobre tecelagem. Já o anfitrião, ao perceber a curiosidade do convidado, estimulou-o a tecer.

Referências

Enquanto as horas passavam na casa do mestre têxtil, Alexandre refletia sobre os teares de rede que já tinha visto em Brejo Santo, na companhia do pai, mas que não haviam chamado sua atenção à época. Pensava ainda nas redes de pesca e almofadas de bilro expostas nas praias do litoral cearense que costumava visitar nos fins de semana, quando ficava hospedado em comunidades pesqueiras.

"Quando eu saí de lá (da casa do Donizete), eu já saí... Não sei te explicar como é que a gente se apaixona assim. Sabe quando você vê uma pessoa e aaah, suspira! É similar. Eu sei que naquela tarde eu me apaixonei pelo tear de pente liço, pela tecelagem manual, e no dia seguinte eu pedi ao meu amigo para ligar para o colega dele e perguntar onde eu comprava uma máquina dessa", lembrou, enquanto preparava a oficina Tramas Experimentais, realizada na Casa Bendita, em Fortaleza.

Os dois anos seguintes formariam um novo tecelão. "Começou assim: era um hobby, que se transformou em produção, e um belo dia começou a atravessar a categoria do artesanal pra categoria artística", explica Alexandre. Esse processo de autodescoberta conferiu-lhe confiança para pedir novas perspectivas e até mesmo um aumento salarial na loja em que trabalhava, mas a resposta foi negativa. Era o que precisava para pedir as contas e apostar na nova paixão.

A verdade é que o cearense não queria sair desesperado procurando trabalho após a demissão. Ele se deu um mês e, enquanto isso, foi fazendo xales e cachecóis para vender no inverno. "No final da estação, eu tinha vendido 300 xales e cachecóis. Mas quando chegou o verão, eu pensei: como vou sobreviver sem meus produtos?". Como já tecia com fitas VHS, Alexandre resolveu fazer umas bolsas e sacolas, e o negócio também rendeu um bom retorno financeiro.

"Eu acho que quando a gente tá fazendo a coisa certa, tomando as decisões corretas, tenho a impressão de que o universo vai colocando as pessoas e coisas no nosso caminho". Diz isso porque, bem nesse período, ele ganhou uma máquina de costura de uma vizinha, o que mais uma vez o fez remeter à infância no Juazeiro. Até os 5 anos de idade, sua mãe trabalhou no ramo de costura, e a lembrança das 10 máquinas espalhadas pela casa nunca se apagou.

Com o tempo, não foi difícil que algo pelo qual nutria tanta dedicação se tornasse também sua principal fonte de renda. "O tear me curou de um fundo do poço. Então ele foi minha arteterapia, aquilo que me colocou no eixo", pontua o tecelão.

Contatos

A habilidade do cearense com as tramas logo foi notada por pessoas que já atuavam no ramo. As publicações que fazia no próprio blog, intitulado "Peixes em Peixes", pelo seu signo e ascendente, atraiu atenção até da imprensa. Então, um salto temporal aproximou Alexandre de tecelões das décadas de 70, 80 e 90. O encontro se deu numa exposição coletiva, a primeira de sua carreira, Tenet - Tecendo na Net, realizada em 2011.

Lá conheceu, entre outros mestres têxteis, Sylvia Ribeiro. "Ela disse que sonhou comigo tecendo na casa dela, queria saber se eu não queria aprender a tecer num tear grande. E sabe qual era o tear? O do Donizete", recorda Alexandre. Sylvia foi uma professora para o tecelão. E ele, um bom aluno, que correspondia a todas as demandas. "Com um mês, ela disse que ia me botar pra tecer para o João Pimenta. Eu nem sabia quem era, não gravava mais desfiles em VHS como eu fazia quando eu morava em Juazeiro. Mas eu topei!".

O cearense ficou seis meses fazendo 100m de tecido manual. No final, dos 30 modelos que o estilista apresentou no desfile de 2012 da São Paulo Fashion Week, 28 estavam vestidos com os tecidos manuais feitos por Alexandre. "Eu, que gravava os desfiles da SPFW, nunca imaginei que pudesse chegar ao evento dessa maneira tão especial. Daí em diante a gente não parou mais! Passamos a trabalhar tecido com nylon, VHS, palha de seda, tear de papelão, de renda, de um tudo", conta.

Os projetos se multiplicaram. O mais recente deles, em parceria com a Melissa, fez o tecelão visitar 33 bairros de São Paulo e passar o dia tecendo com base nas histórias de cada lugar. Foi nessa ocasião que encontrou "a mulher que matou o marido", em Capão Redondo. Além de crianças, bêbados, traficantes.

Em dezembro, concluiu uma graduação em Artes Visuais, escrevendo o TCC "Ofício de Tecelão: artista docente da tecelagem manual". "O tecido está em todo lugar. Ele nos acompanha do nascimento à morte. Eu não posso colocar meu tecido só a serviço da moda, ou só a serviço do design, ou só a serviço do artesanal", defende.

A obra de Alexandre está a serviço de todos. "O tear me deu uma consciência de missão. Eu sinto que eu posso contribuir para que o brasileiro compreenda melhor sua arte têxtil, compreenda melhor sua arte manual". E é o que realmente faz hoje, aos 46 anos, e tramando...

Tramas experimentais

A convite da Casa Bendita, espaço cultural recém-inaugurado na cidade, Alexandre conduziu uma oficina de três dias na última semana em Fortaleza. Duas turmas, de dez alunos cada, tiveram contato com as memórias do período de 33 anos em que o tecelão morou no Ceará. Em "Tramas experimentais", ele reinventa nossas técnicas tradicionais. "É um híbrido onde eu estudo crochê, tricô, renda e filé. Renda que não é renda, tricô que não é tricô, filé que não é filé. Tudo isso em papelão, arara, parede", explica. A expectativa de Alexandre é que, com o novo espaço, a ponte aérea São Paulo-Ceará se torne mais frequente. "Voltar ao nosso Estado a trabalho, fazendo aquilo que a gente mais gosta de fazer, isso é muito especial".

Serviço
Casa Bendita
Rui Barbosa, 888, Meireles Funcionamento: Terça-feira a domingo, de 8h às 21h
Contato: (85) 3093.7717