Quando se deparou com a artista norte-americana Leiomy Maldonado dançando vogue em um vídeo no YouTube em 2016, a cearense Silvia Miranda Viana Macêdo, hoje com 24 anos, entendeu que era aquilo que queria fazer da vida. Na época, ela fazia parte de um grupo de dança na periferia de Fortaleza e buscava, como toda adolescente, um local para se sentir pertencente. Então, chamou amigos para ensaiar no Cuca Barra e começou pesquisar tudo que podia sobre aquele estilo artístico. Quase sem querer, Miranda começava um movimento que acolheria centenas de outros jovens como ela: a cena ballroom cearense.
Forjada nos subúrbios de Nova York na década de 60, a cultura ballroom é um movimento artístico, político e social que, à primeira vista, se destaca pela dança vogue (ou voguing) e pelas balls (ou bailes), concursos de dança e moda que ocorrem de maneira orgânica e premiam as artistas mais bem avaliadas em determinadas categorias.
Uma das precursoras da cultura ballroom, Crystal LaBeija, é tida como a criadora do sistema de “casas” e até hoje é a maior referência mundial do movimento. Mulher trans e negra, ela decidiu criar seus próprios concursos e espaços de acolhimento após sofrer racismo repetidas vezes em competições da cena drag de Nova York. O documentário “The Queen” (1968) é um dos mais famosos sobre esse momento histórico.
No entanto, um dos mais importantes aspectos da ballroom é o espaço de acolhimento e empoderamento que ela criou para quem estava à margem da sociedade, especialmente pessoas negras, trans e latinas. No Brasil, onde o preconceito contra a população negra e LGBTQIAP+ segue latente, o movimento chegou há menos de uma década, segundo Miranda, mas segue tendo o mesmo papel relevante. “O que a ballroom proporciona ainda é um lugar de pertencer”, destaca.
A artista, que na cena é conhecida pelo nome artístico Yagaga Kengaral, é considerada a pioneira do movimento no Ceará – para além do significado original da palavra, os pioneiros são os membros com status mais alto na comunidade ballroom, que é construída por hierarquias artísticas e familiares. Há ainda os artistas considerados stars (estrelas), icons (ícones), legendaries (lendários), entre outros.
A comunidade ballroom se organiza em casas (originalmente houses), grupos que funcionam como famílias e geralmente são chefiados por uma “mãe” ou “pai” (mother/father), mas há também os artistas 007, que performam de forma independente.
Miranda está a frente da Caricata Casa de Kengaral, onde é “mãe” de oito integrantes, todos jovens como ela. Apesar da pouca idade, a artista já é referência nacional, e ajudou a colocar o Ceará no mapa da ballroom da América Latina.
O caminho de Miranda na cena começou de fato em 2017, quando descobriu o programa ID Jovem e, com apenas R$ 60 no bolso, decidiu fazer uma viagem de dois longos dias até Belo Horizonte com uma amiga para conhecer o festival BH Vogue Fever, maior evento da cultura ballroom latino-americana. Até então, as balls se concentravam na região Centro-Oeste e Sudeste do País.
“Naquele momento desenvolveu na nossa cabeça algo tipo ‘ai meu Deus, é isso aqui mesmo que a gente tava vendo na internet!’”, conta. Dois anos depois, por meio de um programa da Prefeitura de Fortaleza, a viagem para mais uma edição da Vogue Fever foi de avião – e com mais 12 amigos da cena, que voltariam da viagem empolgados e cheios de ideias para organizar os próprios eventos no Ceará.
As políticas públicas foram essenciais para o crescimento da ballroom em Fortaleza. Miranda destaca, especialmente, o papel dos Cucas, que se tornaram espaços seguros e acessíveis para treinos e balls. Hoje em dia, segundo ela, cada Cuca possui um núcleo da comunidade ballroom. Balls abertas e gratuitas também ocorrem em equipamentos do Governo do Estado, como Dragão do Mar, Porto Dragão e Porto Iracema das Artes.
Casas de ballroom no Ceará
No início de 2020, quando a cena ballroom cearense começava a se estruturar, a movimentação foi interrompida pela chegada da pandemia. Muitos grupos se separaram, porque realizar bailes e treinos estava fora de cogitação. Porém, no segundo ano da pandemia, casas em todo o País começaram pavimentar um caminho possível.
A primeira ball online foi realizada por uma casa de Recife (PE), em 2020, e estimulou a realização de diversos outros eventos que visavam unir a comunidade em meio ao isolamento. “Durante a pandemia, a cena ballroom brasileira deu uma crescida quase em 100%, porque a gente começou a fazer muitos movimentos online. Na época, a gente percebeu que o Norte-Nordeste tinha uma movimentação muito precária”, relata Miranda.
O que podia ser um ponto final, então, virou estímulo. “Começou a sair muito edital e estávamos com sede de produção, não só para movimentar, mas para prover sustentabilidade para as pessoas. Aí começou a chover balls online em todos os estados, que facilitaram as conexões interestaduais e entre os países da América Latina”, completa a pioneira.
Desde então, foram criadas diversas novas casas em Fortaleza – inclusive capítulos de grupos estrangeiros que, vendo potencial no Ceará, decidiram ter representantes (com espécies de filiais) na cena do Estado, como as houses of Louboutin, Juicy, Gabbana, Versace, Bodega e outras. Atualmente, são pelo menos dez casas cearenses em funcionamento.
“O que era esperado é que esses capítulos abrissem no Sudeste, mas eles abriram aqui. As conexões online feitas na pandemia geraram um alcance imensurável, que hoje faz a gente ter visitas muito interessantes, pessoas que vêm diretamente para cá para conhecer a cena cearense”, celebra Miranda.
Como funcionam as balls
As balls, ou bailes, são concursos de dança e moda que funcionam de maneira orgânica. Primeiro, de acordo com a proposta do baile e com algumas características regionais, são elencadas categorias que serão avaliadas, divididas entre moda e performance.
Depois, os artistas – e quem se sentir à vontade, pois não há inscrição prévia para participar – se apresentam na passarela e recebem notas da banca de jurados, concorrendo a prêmios (simbólicos e financeiros).
No Ceará, há centenas de categorias, das mais convencionais, como “rosto” e “look” às mais curiosas e únicas, como “Becha Cearense Fashion Week” e “Caricata Performance”.
Muito além de dips e catwalks
Apesar de ter se popularizado, principalmente, por meio de shows de entretenimento – como os realities shows RuPaul’s Drag Race e Legendary, onde elementos como dips e catwalks (movimentos do vogue) se destacam como referências às balls –, se engana quem pensa que a ballroom é apenas um espaço de festa e beleza.
Sim, as balls são espaço de celebração e empoderamento para quem, por vezes, não é celebrado em outros espaços; mas nas famílias e casas também se constroem relações mais profundas, que garantem o direito à vida, à saúde, à segurança e ao senso de pertencimento.
A pioneira Miranda conta que, na cena cearense, assim como nos subúrbios de Nova York no fim do século passado, muitos integrantes da ballroom enfrentam questões como abandono familiar, preconceito e violência em diversas faces.
Por isso, a comunidade ballroom busca ser, de fato, uma família escolhida para essas pessoas, especialmente as mais jovens. “É muito difícil, porque a gente por ser ainda comunidade se movimentando de uma forma muito independente, não somos ONG, não temos um fundo, não somos um abrigo”, explica.
Além do acolhimento afetivo e físico – muitos “filhos” moram, de fato, com suas mães e pais da ballroom –, um meio de tentar minimizar essas dificuldades é oferecer prêmios em dinheiro, por meio de recursos públicos e patrocínios, e criar categorias com premiação nas balls para grupos que historicamente têm menos acesso e recursos, como pessoas trans e travestis.
“A gente busca apoio em editais para conseguir essa estrutura, cachê, premiações. Nem sempre tem premiação, às vezes é mais sobre empregabilidade mesmo, mas as premiações também geram sustentabilidade, porque possibilitam que quem ganha possa pagar contas, comprar comida, dividir um aluguel”, lembra Miranda.
O crescimento da cena cearense e nordestina nos últimos dois anos, acredita a artista, é um sopro de alegria em meio a todas as dificuldades, e vem possibilitando um olhar esperançoso para o futuro.
“Através dessas produções, das balls, das aulas, desse protagonismo artístico, a gente vai conseguindo fazer o maior objetivo: a nossa sustentabilidade, que é a nossa vida, porque nós precisamos estar vivas, inteiras e intactas para fazer isso. Esse é o grande babado”.
Cultura ballroom no interior do Estado
Apesar de se concentrar na Capital, a cena ballroom cearense não está restrita à realidade e aos espaços de Fortaleza. Tanto na Região Metropolitana quanto no interior do Estado, em cidades como Sobral e Iguatu, artistas realizam treinos e balls e difundem a cultura dos bailes.
No município de Caucaia, o jovem Sávio Santos, 22, conhecido como Father Preto Dangerous, foi o responsável por criar a primeira casa local da comunidade ballroom. Encantado com o movimento desde que assistiu a série Pose, ele descobriu a página @ballroomceara, que divulga eventos locais e conecta membros da comunidade.
A House of Dangerous nasceu em agosto de 2022, após o Sávio perceber que, assim como ele, outros jovens interessados nos bailes tinham dificuldade de chegar até os eventos da cena na Capital. Após conversar e pedir orientações à pioneira Yagaga Kengaral, ele se uniu a amigos e se tornou “pai”, um sonho que já tinha e que se materializou por meio de uma família escolhida.
“Vim de uma realidade de rejeição, preconceito, racismo, homofobia, tudo isso. Então, foi muito especial chegar em um espaço onde ser 'tudo isso' não é um problema e que é um lugar seguro não só para mim, mas para acolher outras pessoas. O baile é pra gente se divertir, celebrar nossa vivência, mas a familiaridade é o que mais prezo”.
Hoje, Sávio e seus “filhos” vivem em uma mesma vila, “como nas houses dos anos 70 e 80”. Além de ter membros da Caucaia e de Fortaleza – 17 no total –, a House of Dangerous também conta com integrantes no Maranhão.
Em Sobral, a Profunda Casa de Soraya é o grande destaque da cena ballroom. Comandada pela artista e artesã Akwa da Sylva, 26, ela surgiu não de grupos de dança, como costuma ocorrer, mas das batalhas de slam que Akwa frequentava e organizava.
Em uma competição de rimas no fim de 2019, ela propôs uma roda de vogue, estilo que tinha conhecido pelas redes sociais. “Eu nem sabia fazer direito, mas dançava, porque vogue é sobre expressão”, comenta.
Depois do período mais difícil da pandemia – e de diversos marcos individuais relevantes, como a formatura em design de moda e o processo de descoberta de uma retomada ancestral indígena – , Akwa decidiu reunir um grupo de amigos e começar a ensaiar passos de vogue próximo ao rio Acaraú. E foi ali, na beira do rio, que a Casa de Soraya começou a se estruturar.
“Todo mundo estava muito atravessado pela pandemia e a gente queria só queria se encontrar e dançar. Dentro de casa às vezes é um lugar muito adoecedor e a ballroom é um lugar de cura”, ressalta a artista.
Mesmo em contexto urbano, a Profunda Casa de Soraya se destaca pela valorização dos povos originários nas categorias e performances: assim como Akwa, outras Sorayas estão em processo de reconhecimento de sua ancestralidade indígena e de sua espiritualidade. Akwa comenta que, junto às filhas, têm buscado construir uma ballroom com significado "no interior do interior”.
“Estamos cultivando uma semente num solo totalmente diferente. É uma semente que vem da periferia de NY, agora feita por uma travesti no solo cearense, na quentura de Sobral. É muito forte isso, porque lida com questões totalmente novas”.
Projeto fotográfico registra balls cearenses
Como muitos artistas e produtores da ballroom, o fotógrafo e artista visual cearense Régis Amora conheceu o movimento por meio de séries e filmes. Por meio das redes sociais, porém, descobriu que Fortaleza também tinha balls e começou a pesquisar sobre as houses e eventos locais.
Foi nessa pesquisa que conheceu Lucas Nogueira, dançarino e membro da Kiki House of Bodega, que viria a se tornar seu “guia” nos bailes da Capital. “Abordei o Lucas e perguntei se podia ir a uma ball para fotografar”, conta Régis, que convidou o também fotógrafo Tomaz Maranhão para elaborar os registros.
Assim nasceu o projeto Casas de Crystal, que homenageia Crystal LaBeija e fotografa, de maneira orgânica, os bailes da capital cearense. A cobertura visa ampliar a pesquisa de Régis sobre memória, arquivo e performatividade de gênero, que já resultou no fotolivro Atlas Drag, publicado em 2023.
O novo projeto, que vem registrando performances e momentos de preparação para as balls, ainda não tem data para ser concluído, mas também deve resultar num fotolivro, como meio de registrar a movimentação cearense e a força política e afetiva da ballroom.
“A gente prioriza fotografar não só as balls, mas o antes também, a parte de camarim, onde os artistas estão montando personagens, figurinos, coletivamente se maquiam, se ajudam, a construção coletiva de tudo. Essa é a mensagem principal, que todo mundo pode, que todo mundo é bem-vindo, que todo mundo pode se expressar”, explica Régis.
Parte dos registros tem sido cedida aos artistas como forma de contrapartida e apoio para construção de portfólio. Régis, que se identifica como pessoa LGBTQIAP+, ressalta que o projeto é também uma forma de construir um olhar inclusivo e protagonista sobre a ballroom.
“A gente precisa contar a nossa própria história, e o movimento da cultura ballroom é muito poderoso e forte. É um movimento que não pode se perder, tanto no sentido do registro histórico, quanto na questão artística”.
SERVIÇO
Para conhecer
ITA Ball – Programação formativa na Temporada de Arte Cearense
Quando: 19, 26 e 27 de janeiro
Onde: Galpão da Vila (Vila Demétrio, 1 - Benfica)
Mais informações: @ita.ball
Gratuito e livre, mediante inscrição prévia
ITA Ball – Miniball da Encruza
Quando: 20 de janeiro, às 18h
Onde: Galpão da Vila (Vila Demétrio, 1 - Benfica)
Mais informações: @ita.ball
Gratuito e livre
Fortal KuntBall
Quando: 25 de janeiro, às 18h
Onde: Estação das Artes (R. Dr. João Moreira, 540 - Centro)
Mais informações: @estacaodasartes.ce
Gratuito e livre
A Cena é Nossa – T de Trans Ball
Quando: 28 de janeiro, das 16h às 21h
Onde: Espaço Rogaciano Leite Filho do Dragão do Mar (R. Dragão do Mar, 81 - Centro)
Mais informações: @dragaodomar
Gratuito e livre
Oficina Vivência e Desenvolvimento Social Ballroom / Porto Iracema das Artes
Onde: Escola de Cultura, Comunicação, Ofícios e Artes - ECOA, (R. Dr. Carlito Pompeu, 116 - Centro, Sobral - CE, 62010-465)
Quando: dia 26 de janeiro, às 18h
Mais informações: @portoiracemadasartes
Gratuito e aberto ao público
Para acompanhar
Ballroom Ceará – Instagram | YouTube
Ballroom Norte/Nordeste – Instagram
Miranda/Yagaga Kengaral – Instagram
House of Dangerous – Instagram
Profunda Casa de Soraya – Instagram