Para alguns, impossível. Para outros, propósito. Beijar somente após a cerimônia de casamento virou notícia depois de o ator e diretor de fotografia Miro Moreira divulgar nas redes sociais o compromisso firmado com a noiva, a empresária Liliane Lima. “Vamos esperar para dar o primeiro beijo no altar”, afirmou o ex-participante do reality show A Fazenda.
O momento acontecerá no dia 23 de julho, em São Paulo, passados nove meses de espera. A decisão foi tomada, segundo eles, a partir da escuta de um pedido de Deus. “Nunca tinha tido um namoro assim, em que eu não pudesse sair sozinho com a minha namorada. Um dia estava orando e Deus falou comigo: ‘Não toca na minha filha’. Eu achei isso muito sério e respondi: ‘Amém. Vou esperar’”, detalhou Miro.
O caso dos dois não é isolado, porém. Na contramão do convencional, vários casais compartilham a mesma experiência de renúncia ao beijo antes do enlace matrimonial. Em Fortaleza, o administrador Gustavo Oliveira, 33, e a psicóloga Renata Magalhães, 28, integram esse time. Fiéis na igreja evangélica Missão Carismática Milagres e casados há três anos e nove meses, eles tomaram como princípio a doutrina do espaço em que congregam.
“A igreja nos ensinou a viver em santidade, a aproveitar esse tempo de espera para investir em outras áreas das nossas vidas. Nesse período, focamos em crescer profissionalmente, buscamos maturidade emocional e nos dedicamos a conhecer o outro melhor”, explica Gustavo, que a partir de 2010 manteve o compromisso da ausência de beijos com Renata.
O propósito, contudo, foi alimentado bem antes por cada um. De forma individual, eles escolheram se “aliançar” com Deus e esperar o tempo certo e uma pessoa especial para se casar. “Nos conhecemos, oramos um pelo outro, noivamos e após quatro anos, casamos”.
Os desafios decorrentes dessa vontade ocorreram tanto na época em que ainda não estavam comprometidos um com o outro, e muito mais quando oficializaram o namoro. A superação, por sua vez, se deu pela fé, por meio de oração e confiança divina. Além disso, ambos evitaram momentos de muita proximidade, capazes de gerar intimidade antes do tempo.
Contaram também com o apoio da família e de amigos da igreja. “Recebemos orações, aconselhamento e curso para noivos dos nossos queridos pastores, Alisson e Lucinda Gadêlha. Eles celebraram nosso casamento e nos ensinaram que o casamento é uma aliança com Deus e com o cônjuge que não deve ser quebrada”.
Namorar sem beijar: como?
Mas, afinal, como é um namoro no qual o beijo não é um dos elementos centrais? Gustavo considera ser totalmente diferente, algo que exige paciência e convicção. Hoje, ele e Renata observam os anos nos quais aguardaram um pelo outro e não conseguem acreditar que permaneceram fiéis a esse compromisso até o altar.
“Mas sabemos que isso só foi possível pela fé que temos em Deus e por acreditarmos que o nosso Deus é fiel e cumpre todas as suas promessas”, sublinha. “Tínhamos certeza que após o tempo de espera seríamos ainda mais felizes e, juntos, construiríamos nossa família”.
O casal nunca lidou com a situação de modo negativo. Também não possuem vergonha de compartilhar a própria história. Conforme contam, geralmente, num primeiro momento, algumas pessoas não concordam e acham desnecessária a decisão; outras ficam muito surpresas e não compreendem como alguém pode ser noivo e ainda não ter beijado.
“Mas, ao compartilharmos nosso testemunho, elas são impactadas e motivadas a olhar para os próprios relacionamentos com mais amor e paciência. Nunca pensamos em desistir da ideia pois, antes de firmarmos o compromisso um com outro, nos aliançamos com Deus”.
No esperado dia do beijo, ansiedade, alegria e vergonha se confundiram – tendo em vista que foi a primeira vez dos dois, e justamente na frente de vários olhares. Ao se abster desse componente antes do casamento, Gustavo e Renata aprenderam a valorizar pequenas alegrias e conquistas. Esse é o melhor caminho para uma relação saudável e duradoura, segundo eles.
“Guardamos na memória o dia em que pegamos na mão pela primeira vez. No tempo de espera, amadurecemos, compartilhamos sonhos, fortalecemos nossa amizade, desejávamos a companhia do outro. E percebemos como pequenas atitudes alimentam um relacionamento. Surpresas, demonstrações de afeto e conversas são importantes”.
Formas de viver o afeto
Fato é que práticas culturais capazes de fugir ao mais comumente representado como normal ou padrão tendem a ser criticadas em algum nível, seja moral, econômico, ético ou religioso. Quem nos aloca nesse contexto é o psicoterapeuta e terapeuta sexual de casais, jovens e adultos, Francisco Ilo. Segundo ele, novas configurações de namoro/relacionamento não são muito antigas, datando de até 50 anos atrás. Antes disso, elas costumavam ser bem diferentes.
O namoro ora existia, ora não existia – noivava-se e casava-sa logo. Se existia, geralmente envolvia visitas à casa da futura parceria, sempre sob a vigia dos pais. Ficar de mãos dadas era um grande passo rumo à intimidade e o sexo na juventude, antes do casamento, era clandestino e, pelo risco de gravidez, até perigoso, uma vez que os anticoncepcionais hormonais femininos só começaram a se popularizar em meados da década de 1970.
“Hoje em dia, temos como prática cultural hegemônica, ou mais representada, o relacionamento com abertura ao contato físico, ao sexo e ao prazer sexual. Isso é repassado nas relações familiares e sociais, com a cultura em geral. Logo, esse é um período de grande liberdade sexual, e muitas pessoas vivem felizes com essa liberdade, podendo estranhar, criticar e se perguntar sobre os motivos que levariam outras pessoas a optarem por não vivê-la a não ser sob certas condições (de casamento, em geral)”.
De forma particular, o psicólogo acha fascinante que, na dinâmica da clínica, ora atenda um casal num casamento aberto, ora um solteiro tranquilo com a própria solteirice, ora namorados que escolheram esperar o casamento para transarem, ora um trisal em um relacionamento fechado. “A multiplicidade de formas com que cada pessoa vive a própria vida é efervescente e temos cada vez mais contato com o diferente”, vibra.
Independentemente disso, simplesmente por estarmos vivos, teremos momentos e momentos. Experimentaremos alegrias e angústias profundas. Essa é a vida de solteiros, casados, monogâmicos ou não, religiosos ou não. Críticas à forma como alguém vive um relacionamento podem ocorrer por vários motivos: por alguém não se ver vivendo assim, estranhamento, histórico ruim em situações semelhantes ou apenas pelo desejo de criticar”.
“Para além de fugir ou driblar essas críticas, é muito importante a pessoa saber por que e para quê vive sua relação assim: quais valores guiam o relacionamento? Quem vocês querem ser e que vida querem levar juntos? Essas perguntas dão direções positivas a seguir – direções que não dependem necessariamente de aprovação ou validação social”.
Convenções bastante distantes da realidade de Alexandre Silva,32, e Maiara Santos, 30. O recepcionista e a dona de casa partiram de uma decisão pessoal a fim de investir em uma relação na qual o beijo não existiria até a subida ao altar. Ambos são evangélicos, da Igreja Pentecostal Milagres, e casaram em novembro de 2017.
“Hoje temos certeza de que esse relacionamento sem beijo é o que fortificou nossa comunicação, respeito e carinho. A alegria de estar perto um do outro, a consciência em saber que não estávamos ali apenas com o interesse de satisfazer os desejos carnais, mas, sim, dividir momentos e aproveitar ao máximo para conhecer um ao outro, supriram todas as vezes em que pensávamos no dia do casamento e do beijo”, dividem.
Mas nunca foi fácil. É necessário ter ajuda, conversa, diálogo e alguém para acompanhar o casal. Por vezes, de acordo com eles, se começa a imaginar como seria beijar a pessoa amada. Porém, sempre decidindo honrar primeiramente a Deus.
“Nunca foi uma obrigação fazer esse tipo de aliança com Deus. Começamos a entender o que Ele realmente queria de nós, então para evitar qualquer situação em que o desejo aumentasse, sempre quando saímos juntos, levávamos alguém para nos acompanhar. Ficar só nunca era o indicado, pois o espírito está pronto, mas a carne é fraca”.
Nessa travessia, o que mais ouviram foram frases como “são muito radicais” ou “querem ser muito santos”. Mas o foco na missão não os tirou do eixo. “De todo modo, a ansiedade sempre foi muito grande. Eu contava os anos, horas, minutos e segundos, esperava que ficasse marcado em nossas vidas, assim como ficou. A Pastora sempre foi minha amiga, então, no momento do beijo no casamento, ela disse: ‘Chegou tua hora, agora aproveita’”, ri Alexandre. “Demos um lindo beijo carregado de amor, carinho e respeito”.
Agora eles qualificam os frutos. A experiência foi importante para se conhecerem melhor, aprendendo a se relacionar sem se preocupar com os próprios interesses. Hoje o casamento de ambos, segundo eles, é saudável porque antes conseguiram conversar, ouvir um ao outro e compartilhar os próprios sentimentos.
“Sempre que temos oportunidade, compartilhamos nossa experiência com alguém. Nunca vamos dizer que as pessoas são obrigadas a fazer o mesmo, mas mostramos os resultados do que plantamos lá atrás. De acordo com o que a sociedade ensina, é bem difícil e improvável; porém, se estiverem alinhados com o que a Bíblia ensina, certamente conseguirão, assim como nós conseguimos”, observa Alexandre.
Guiar o sentir
Pastor da Igreja Cristã Evangélica Fortalezense, José Wellington de Oliveira realiza esse ofício, sobretudo com jovens casais. Ele diz que o interesse em não beijar por parte deles é muito raro – exceto para alguns que já conhecem alguma iniciativa cuja proposta é incentivar a prática de namoro sem contatos físicos, a exemplo dos movimentos Eu Escolhi Esperar e Namoro em Corte.
Os desafios, a julgar pelo que observa, são conseguir vencer as tentações e manter o controle sobre as próprias emoções e desejos. Outro entrave é driblar opiniões contrárias – a exemplo de ser taxado de ultrapassado – e o apelo da mídia, a partir de propagandas e filmes incentivando o contato físico e a relação sexual.
“Para eles romperem com essas práticas que para a sociedade já se tornaram comuns, é muito difícil. Alguns até começam e tentam, mas não conseguem perseverar”, analisa. “Casado há 27 anos, eu tive essa experiência durante todo o namoro com a minha esposa. Não tivemos beijos e contatos físicos. O primeiro beijo foi depois do noivado e nos guardamos para o casamento. Foi uma experiência muito boa. E se pudesse faria tudo novamente”.
Nesse sentido, o conselho que ele dá aos jovens é claro: foquem durante a fase de namoro em conhecer a pessoa nas áreas emocional e espiritual. “Deus estabeleceu o conhecimento do relacionamento físico para depois do casamento. Seguindo esses princípios e andando conforme a palavra de Deus, vocês terão um casamento sólido e duradouro. Serão casados para sempre”.
Sob outra perspectiva, o psicólogo Francisco Ilo pondera que a intimidade não necessariamente está ligada a beijo ou sexo. É possível beijar e transar com muitas pessoas em festas e encontros e não haver intimidade nessas relações. O que está em jogo quando se decide não vivenciar essas questões durante um namoro é, entre outras coisas, não criar repertório sobre esses aspectos evitados.
Ou seja: quando houver o beijo ou a transa entre as parcerias depois do casamento, ambos podem julgar que uma ou a outra pessoa, ou mesmo eles enquanto casal, não sabem fazer o beijo ou o sexo de forma prazerosa, que não está funcionando e que não gostaram realmente daquilo. “Essa situação não precisa significar o fim da relação. Novamente: quais valores guiam seu relacionamento? Quem vocês querem ser e que vida querem levar juntos? Qual o lugar do sexo e do beijo nesse relacionamento? De que forma vocês expressam carinho e amor um pelo outro?”, questiona.
Em todos os relacionamentos, principalmente à medida que se tornam mais longos, é preciso se reinventar e aprofundar a intimidade – esse processo que acontece quando nós, numa relação, nos mostramos vulneráveis e passíveis de críticas, distanciamento e toda sorte de coisas ruins, mas, ao contrário do esperado, somos acolhidos e também acolhemos o outro quando ele se mostra assim.
“Conversar sobre essas coisas difíceis, aprofundando a intimidade, dá possibilidade de o casal se ajustar em relação à expectativa do outro e também de se descobrirem. O que gostam, o que não gostam, o que estão dispostos a experimentar e quais seus limites. Se por vezes essas conversas forem difíceis de serem feitas entre os parceiros, há a possibilidade de eles procurarem terapia de casal ou terapia sexual”.