O termo "rebobinar" é específico de um passado nem tão distante. Na risca, significa enrolar a fita novamente na bobina. No quesito comportamental temos a seguinte situação. As locadoras de vídeo, da simples à mais 'estribada', tinham uma regra sagrada. Na devolução dos VHS, o cliente deveria entregar a fita como recebeu.
Às vezes, não era o caso. Depois de se deliciar com o filme, muitos de nós meros mortais esquecíamos de apertar o "biloto" que voltava o material. Como as lojas contavam com centenas de fitas, imagina o drama de ter que fazer esse serviço a cada aluguel? Diante da dor de cabeça, a saída das locadoras foi recorrer às multas.
Esse "rebobinar" descreve toda uma cultura e modo de consumo. O outrora celebrado segmento de "home vídeo" hoje é lembrança diante do império erguido pelos serviços de “streaming”. Uma das últimas empresas voltadas ao serviço no País encerra as atividades em Fortaleza. A Distrivídeo conclui as operações após 34 anos de serviços prestados.
Ao saber da notícia, a ideia imediata foi colar na loja da Antônio Sales. Quem sabe, adquirir algum DVD ou até comprar um primeiro Blu-ray (para saber como funciona). Tava na pilha de encontrar o "Lucky" (2017). Nada mais adequado ter a despedida do gigante Harry Dean Stanton (1926-2017) nessa situação.
Mad Max - A Caçada Continua
No caminho, o diacho da memória me jogou no início dos anos 2000. Naquele instante, duas mídias de bastante sucesso se tornavam párias no mercado. O LP e os VHS passaram a ser considerados entulho. Eram escorraçados em praça pública. O primeiro voltou dos mortos e atualmente custa algum rim. As fitas, tchau.
Liso, era a minha vez de montar uma coleção. A alternativa era bater perna pela cidade e o faro era aguçado. Bastava saber que locadora X estava migrando para o DVD e lá ia o "colecionador". Criado no Montese, tive a sorte de ter conhecido City Vídeo, Lokim, Fader Disc Laser (especializada em aluguel de CD!) e uma que tinha na Alberto Magno...
Não recordo agora. Mas, naquele espaço, vi os VHS de "Laranja Mecânica" (1971) e "The Decline of Western Civilization Part II-The Metal Years" (1988).
Sim, era comum ir nesses lugares só para ver o que tinha. Era o "zapear" daquele tempo (Hoje você paga para fazer isso).
Essa jornada, caçar VHS mofados por Fortal me levou à King Vídeo da Bezerra de Menezes. Outro canto massa foi a DSR Vídeo (valeu, Danyel Noir) da Sargento Hermínio. Revirei muita banca do Centrão e até na Feira dos Pássaros rolou uma guaribada na pesquisa. A Distrivídeo seguia firme. Até a estrangeira Blockbuster ela venceu.
Pertinho da Rodoviária Eng. João Thomé tinha a "Hot Vídeo". Lá, escutei um diálogo que resume bem esse debate entre tecnologias obsoletas. Uma mãe na companhia da filha pequena chegou para o balconista (ou dono, nunca perguntei) e quis vender umas fitas usadas das princesas da Disney. Aquelas verdinhas, lacradas com hologramas e tals. Coisa muito fina. Isso era coisa de 2003.
O atendente ouviu paciente a oferta e deu o preço dele. A cliente, indignou-se com o valor e comentou indignada: "Olha, elas valeram muito caro". Do outro lado do balcão, o figura não perdeu tempo:
"Minha filha, eu tenho a coleção completa da Bethânia em LP. Pra muita gente não vale nada. Mas para mim, vale tudo".
Memórias são como lágrimas... Não, pera
2021. Chego na Distrivídeo e percebo uma longa fila do lado de fora. DVD estava na casa dos R$ 5, uma beleza. Por conta da pandemia, a quantidade de pessoas no interior da loja era calculado. Até arrisquei. Ocupei meu lugar no fim. Decisão que nem durou coisa de 2 minutos. Resolvi vazar.
34 anos depois, um marco cultural de Fortaleza cumpre sua jornada. Nessas quase quatro décadas, famílias inteiras tiveram acesso a conhecimento cinematográfico.
Dizer que o povão não gosta de cultura é um erro. Não ter grana e acesso é outra coisa.
Basta olhar no Centrão, nas feiras dos bairros afastados. Pirataria (o debate é complexo, podemos deixar para outro momento) é um sinal de sobrevivência para muitos.3 DVD por R$ 10!
Duas dicas de filme. Um é o "Rebobine, Por Favor" (2008). Dirigida pelo Michel Gondry, essa história conta os últimos dias de uma vídeolocadora. Em determinado dia, um otário da cidade (vivido pelo Jack Black) literalmente queima as fitas do lugar. Resta ao balconista vivido por Mos Def, com a ajuda desse paspalho, "refilmar" alguns filmes da loja.
Outra boa sacada é o documentário "CineMagia: A História das Videolocadoras de São Paulo", de Alan Oliveira. Como é cruel o destino, você pode assistir no streaming da Amazon.
Aqui você assiste o making of do documentário "CineMagia".