A partir desta quarta-feira (9), você pode entrar. A casa é sua. Mas entre com pressa de viver, querendo o que a alma deseja. Nova livraria de rua de Fortaleza, a “Coração Selvagem” traduz o espírito da canção de Belchior (1946-2017) por meio de uma experiência multissensorial, conectando pessoas, olhares, paladares, tempos e histórias.
A própria fundação do estabelecimento surge de uma narrativa específica, a trajetória de Beatriz. Na década de 1990, à época com 40 anos de idade, ela viveu na Praia de Iracema portando traços de uma existência revolucionária. À frente do tempo, preconizou ideias e comportamentos que hoje fazem parte da vida de várias mulheres.
O fascínio por essa personagem, de nome fictício, conduziu a empresária e jornalista cearense Leane Landim por diversos outros relatos durante a pandemia de Covid-19, tendo Beatriz sempre como norte. Segundo ela, a história dessa figura visionária está intimamente ligada à PI e aos caminhos de todos nós, atravessando momentos de glória, declínio e reestruturação.
Reunir todos esses elementos em um só ambiente pareceu a oportunidade perfeita de realizar um sonho antigo: abrir uma livraria e disseminar a arte para mais pessoas. “O conceito principal da casa é trazer a literatura para a rua e a praia, unindo o que a gente tem de melhor: o mar, o andar na rua, o costume de botar a cadeira na calçada, esperar os amigos, tomar um café e ver o tempo e as pessoas passarem”, detalha a também livreira.
A relação com o eterno rapaz latino-americano, por sua vez, vem de longe, tendo se intensificado durante o período de isolamento mais rígido. Landim passou a escutar com maior frequência as canções de Belchior, enxergando em “Coração Selvagem” a síntese perfeita de emoções – sobretudo a já comentada “pressa de viver”. Além disso, a letra tinha tudo a ver com Beatriz, evocando a liberdade que nos alimenta e estimula.
“Quando escuto essa música, lembro de uma época e de toda uma geração que viveu a Praia de Iracema, cujo auge foi na década de 1990. Há muitas boas recordações desse momento em que a gente se apaixonava pela vida, pela praia e por esse lugar”, rememora Leane.
Mundo inteiro na estrada em frente
Localizada na Rua dos Tabajaras, esquina com a Rua dos Tremembés, a “Coração Selvagem” é livraria, café e museu de narrativas com o desejo de recuperar tudo isso, instaurando algo novo. Um lar tão aconchegante quanto repleto de camadas.
Atravessando o portão de entrada, em constante namoro com o mar, nos dirigimos à sala de Beatriz. Nela, cadeiras, quadros e luminárias – todas as peças adquiridas em antiquários – dizem que estamos em outro tempo. Há também mesinhas, destinadas à apreciação de café, respeitando distanciamento e comportando até 50 pessoas sentadas. A vibração de cores como o vermelho e o verde nos envolvem ainda mais nessa atmosfera de encanto, paixão e alegria de viver.
Adentrando ainda mais o espaço, nos deparamos com a sala de jantar e a varanda. A primeira é decorada com cristaleira, louças antigas e luminárias também de outras épocas. Uma vez Beatriz ter sido uma mulher culturalmente avançada, no local também podem ser encontradas peças de design específicas dos anos 1990.
Já a varanda reconstitui o acolhimento de casa de vó, com piso reaproveitado de demolição. Leve e confortável, o ambiente dá para um jardim, este portando um átrio no centro. A ideia é que o recinto – ainda em fase de finalização – comporte cadeiras e mesas, proporcionando agradáveis momentos de leitura e convivência.
Na sequência, encontramos a cafeteria, a cozinha – tocada pela chef Louise Benevides, que traz no cardápio, entre outras delícias, uma releitura do prato “Pedacinho do céu”, outrora bastante consumido em um famoso estabelecimento da PI – e a livraria. Esta, conforme Leane Landim, é o coração do lugar.
“Os livros são poucos, mas muito bem escolhidos. A primeira curadoria das obras novas é da Socorro Acioli”, diz, referenciando a escritora cearense, colunista do Diário do Nordeste. Inclusive, foi por meio da Especialização em Escrita e Criação, coordenada por Socorro, que Leane desenvolveu a história de Beatriz. O texto, desenvolvido sob o gênero novela, deve ser publicado no primeiro aniversário de funcionamento da “Coração Selvagem”.
Ultrapassando o componente da novidade, igualmente será ofertado ao público o contato com livros usados. Um armário antigo funcionará como sebo, vendendo e recebendo obras de segunda mão a partir de uma curadoria da livraria. “Como o espaço é pequenininho, temos um recorte na literatura, nos livros de fotografia (com curadoria da fotógrafa e jornalista Iana Soares) e na seção infantil, fazendo com que nossas crianças também embarquem nesse mundo dos livros, sentindo a natureza por meio do mar”, situa a proprietária.
Detalhe importante: há uma rede armada no espaço da livraria, ao lado de uma cadeira de balanço. Para Leane, traduzir a essência da cultura cearense em cada canto foi imperativo. Os visitantes mais atentos também notarão que trechos da letra de “Coração Selvagem” estão inscritos nas paredes das salas de visita e de jantar. Vinis completam o panorama de itens charmosos e repletos de magia, em consonância com o apuro de Beatriz.
Uma frase dentro da sua canção
Daqui a dois meses, será possível conhecer o museu de narrativas da casa. Localizado no primeiro andar, ele reconstituirá o ateliê e o quarto de Beatriz, com objetos dela – roupas, sapatos e bijuterias, por exemplo. A ideia é que o ambiente seja voltado para a recolha de histórias de quem viveu na Praia de Iracema, sobretudo na mesma época da mulher.
“Será um cantinho onde as pessoas podem se sentar e, quem quiser, contar a própria história aqui na praia. As narrativas serão hospedadas no nosso site”, pontua Landim. De acordo com ela, a ocasião é oportuna para retomar o contato com a PI, fazendo com que a praia volte a ser prioridade nas nossas escolhas de passeio. “Quando pensei na história de Beatriz e na ideia da livraria, não podia ser em outro lugar: tinha que ser aqui, nesse local de encontros”.
Ao somar no contexto das livrarias de rua de Fortaleza – o time é composto por, entre outras casas, a Lamarca, Arte & Ciência, Ernesto & Rosa e Acadêmica – a “Coração Selvagem” igualmente parte do princípio de que é preciso proporcionar uma experiência ao público. Para isso, investirá em futuros eventos de lançamentos de livros, encontros de clubes de leitura e tudo o mais que a imaginação e a vontade permitir, incluindo flerte com o cinema e com as artes visuais, a partir de painéis como o da artista plástica Azuhli, já presente no local.
“Esse é um lugar de esperança também. Acreditamos na cultura cearense e na cultura brasileira, então é realmente uma aposta de ir na contramão de um país que tem feito tudo contra isso. Com pequenos movimentos, podemos fazer esse resgate, mostrando para os nossos filhos e para as outras gerações que a cultura tem uma importância primordial na nossa vida. Nossas portas, portanto, estarão abertas para que possamos ter esse momento de encontro de forma integrada”.
Um sonho tão bonito quanto necessário, otimizando, no caminho, a verdadeira troca de olhares e a felicidade de estar onde se alimenta o bem. “A ideia da fundação da casa é minha, mas eu não estou só. Tem muita gente sonhando comigo. E o compartilhar dessa alegria, desse sonho, enche meu coração de felicidade”.
Serviço
“Coração Selvagem” - Livraria, café e museu de narrativas
Rua dos Tabajaras, 450, Praia de Iracema. Abertura nesta quarta-feira (9), sem evento específico devido às limitações da pandemia de Covid-19. Funcionamento: de quarta à sexta-feira, das 9h às 19h; aos sábados, das 8h às 19h; aos domingos, das 8h ao meio dia. Mais informações, pelas redes sociais da casa (@coracao_selvagem)