Com cursos de moda e costura, Casa de Andaluzia acolhe e capacita talentos LGBTQIAP+ em Fortaleza

Associação, que completa 30 anos em 2024, tem como carro-chefe o projeto "Costurando Vidas", que oferece qualificação profissional e acolhimento

Tudo começou com uma viagem de férias. No início da década de 90, o espanhol Javier Garcia passeava por Fortaleza com um grupo de amigos quando descobriu, nos jardins do Theatro José de Alencar, o trabalho do Movimento Nacional de Meninos e Meninas de Rua (MNMMR), que acolhia crianças e adolescentes em situação de vulnerabilidade. Voltou para a Espanha com uma ideia fixa: retornaria à capital cearense em breve, desta vez com um propósito maior.

O sonho de Javier se tornou realidade em 1994, quando, após captar recursos junto ao governo espanhol, conseguiu voltar para Fortaleza e custear a compra de uma casa no Benfica. Ali seria a sede da Casa de Andaluzia, uma organização que complementaria o trabalho de assistência social do MNMMR. 

Desde então, o espaço – hoje reconhecido como Ponto de Cultura do Estado – realiza programas de capacitação profissional para a população LGBTQIAP+ da Capital, além de atividades culturais e de prevenção contra o HIV. 

O “cartão de visitas” da Casa é o projeto “Costurando Vidas”, que oferece cursos de costura e moda para pessoas em situação de vulnerabilidade, que moram em periferias ou são egressas do sistema prisional. 

A ideia do curso de costura surgiu de uma vocação cearense: com grande número de empresas têxteis em Fortaleza, seria mais fácil conseguir inserir os alunos no mercado de trabalho. Com o tempo, o interesse dos estudantes pela moda fez com que o projeto fosse ampliado e se tornasse um importante centro de formação de estilistas.

“Foi uma ideia das próprias meninas”, destaca Javier. “Elas começaram a criar suas próprias marcas, então a gente se viu ‘obrigado’ a também entrar nesse mundo da moda, para poder apoiá-las”, ressalta.

Por muitos anos, os cursos eram realizados com dificuldade, mediante captação de recursos públicos. Quando conseguiam passar em algum edital da Prefeitura, do Estado ou de órgãos públicos da Espanha, era possível seguir com as atividades.

Desde o ano passado, porém, a associação conta com suporte financeiro da organização católica Manos Unidas, que garante, além dos equipamentos e materiais necessários, merenda e auxílio transporte para os alunos.

Criado há 20 anos, o projeto Costurando Vidas já teve 30 edições e hoje conta também com cursos de aperfeiçoamento. Os cursos duram seis meses e acontecem duas vezes por semana. Por semestre, 25 estudantes são atendidos.

Ao fim de cada percurso formativo, cada concluinte apresenta uma peça autoral em um desfile aberto ao público. A última edição aconteceu no shopping RioMar Kennedy, no início deste mês.

Nos últimos anos, além das formações em Fortaleza, o programa também formou turmas de alunas indígenas da etnia Tapeba, em Caucaia, e do Quilombo de Cumbe, em Aracati. 

Moda como potência travesti

Nos últimos 15 anos, os cursos de costura e moda da Casa de Andaluzia se voltaram para o protagonismo da população trans. Nesse período, cerca de 500 mulheres trans e travestis concluíram as formações.

A mudança surgiu diante da dura realidade enfrentada por essa parcela da população – por causa da transfobia, grande parte delas precisa abandonar os estudos ainda cedo, o que torna ainda mais difícil a entrada no mercado de trabalho e as possibilidades de empreender.

“As mulheres travestis têm um potencial muito grande. Elas são como a ave fênix: das cinzas, nasce um pássaro muito bonito. Então, se você dá uma oportunidade para essas mulheres, que já estão acostumadas à resiliência, essa oportunidade se converte em resultado”, destaca Javier Garcia.

Após a conclusão dos cursos, por meio de uma parceria com o Sine/IDT, a Casa de Andaluzia busca viabilizar oportunidades de emprego para as alunas – seja dentro ou fora da moda. Há dois anos, a associação também conta com uma opção para quem quer montar sua própria marca de moda: a incubadora de negócios da Casa de Andaluzia, que conta com o apoio do Sebrae Ceará e impulsiona, atualmente, o trabalho de dez estilistas cearenses.

Além do apoio às alunas durante e após a formação, a organização ainda possui uma parceria com a Loja Utopia, do Dragão do Mar, que comercializa os produtos de moda e de artesanato feitos pelas alunas, garantindo renda e visibilidade para os talentos.

Com as novas oportunidades oferecidas pela Casa e o avanço do debate sobre os direitos da população LGBTQIAP+ no Brasil, o perfil de alunas trans e travestis tem mudado, conta Javier. Se no início muitas mulheres que chegaram à associação tinham entre 30 e 40 anos e buscavam uma alternativa para sair da prostituição, hoje a associação recebe um público mais jovem, de 18 a 25 anos.

“Hoje já recebemos algumas meninas que ainda estão no Ensino Médio, algumas que estão chegando à faculdade aos poucos, procurando formação profissional, o primeiro emprego ou ser empreendedora”, destaca Javier.

O coordenador do projeto atribui essa ampliação do público ao boca a boca: ao longo dos anos, as ações da Casa foram se tornando conhecidas entre a população trans da Cidade, tanto no campo da empregabilidade quanto na assistência social. “Acho que não tem uma travesti em Fortaleza que não conheça o trabalho da Casa de Andaluzia”, comenta, orgulhoso.

Atualmente, Javier e a equipe buscam ultrapassar os muros da Casa de Andaluzia. Além de formações em territórios indígenas e quilombolas, a associação tem mapeado, junto à Pastoral Carcerária, a população trans que se encontra em presídios do Ceará.

Para o produtor cultural, a maioria das pessoas trans que chega às prisões está ali por falta de oportunidade. “Elas estão nas prisões porque, desde que são crianças, elas são chamadas a abandonar os estudos por conta da transfobia. A maioria abandona os estudos no Ensino Fundamental ou Médio, porque o sistema educativo não está preparado para elas”, lamenta.

O programa visa, portanto, ser um recomeço para as egressas. “Nosso objetivo é conhecer as travestis que estão nos presídios para que, quando elas saiam de lá, elas possam fazer os cursos”, explica.

“A gente tem que prosperar, não regredir”

Ao adentrar na sede da Casa Andaluzia – um sobrado branco com uma fachada grafitada e colorida, onde se lê, entre outros dizeres, “Vidas negras importam - Cultura, arte, paz” – é possível conhecer, de pronto, parte do trabalho desenvolvido pela associação. No térreo, uma exposição fotográfica reúne alguns dos diversos desfiles, formações e atividades culturais realizadas nas últimas décadas.

Uma pequena escada ao lado da exposição leva à sala principal, um espaço amplo e bem iluminado onde as estudantes desenham, trabalham nas máquinas de costura e trocam ideias sobre criações. É ali que o professor Marcelo Mota – ele mesmo um ex-aluno da Casa de Andaluzia – e a assistente de costura Maria Luiza Dias ensinam os principais aspectos da costura e do estilismo, do nível iniciante ao aperfeiçoamento.

Além dos instrutores, outros ex-alunos continuam trabalhando junto à associação. É o caso da empreendedora social Ana Beatriz Gomes, 47, que há sete foi acolhida pela Casa de Andaluzia após perder a casa em um incêndio. 

Hoje, além de ter concluído os estudos nas áreas de informática e administração, ela trabalha na loja Utopia, vendendo produtos feitos pelas costureiras e artesãs da instituição, e destaca: a Casa vai muito além de uma escola de qualificação profissional.

“Aqui é acolhimento, é família. A gente nunca abandona as ex-alunas. A gente tem um grupo e fica sempre em contato com elas”, comenta. A manutenção de vínculos é ainda mais importante para mulheres que, como ela, precisaram recorrer à prostituição para sobreviver, bem como para as egressas do sistema prisional. “A gente acompanha para que elas não voltem para a vida pregressa, porque a gente tem sempre que prosperar, não regredir”, ressalta.

Acolhimento impulsiona carreira das artistas

Os cursos e a incubadora de negócios da Casa de Andaluzia têm funcionado, para além do acolhimento, como uma ponte para a realização de sonhos. Na associação, estudantes autodidatas e jovens talentos cearenses têm conseguido estrutura para dar corpo aos seus projetos autorais, de marcas de moda e acessórios a fábricas de confecção próprias.

A assistente social Naylla Costa, 25, que se formou no curso de costura da Casa no fim do ano passado, é uma das ex-alunas que já está à frente de uma empresa, a D Confecções – e quer levar, além de peças que refletem sua paixão pela moda, oportunidades para outras pessoas LGBTQIAP+.  

Natural de Massapê, Naylla chegou em Fortaleza em 2021 e percorreu outros espaços de acolhimento até chegar à Casa de Andaluzia em 2023, quando aproveitou o conhecimento em costura que tinha aprendido com a mãe para colocar em prática o sonho antigo de empreender.

“Eu já trabalhei em ONGs e sindicatos na minha cidade e sei que uma ONG é uma porta de entrada para o mercado de trabalho quando você é uma minoria social”, ressalta a estilista. “Além disso, a ONG que vai te dar aquele serviço mais imediato de te acolher, de te dar o mínimo”, completa.

Na Casa de Andaluzia, viu seu trabalho ser reconhecido e verdadeiramente valorizado e, a partir da formação, conseguiu colocar de pé sua microempresa e começar a costurar para diversos fornecedores. Mas Naylla destaca que a atenção vai além do trabalho – um diferencial que enxerga como fundamental para o sucesso das alunas.

“Eles têm essa compreensão de chegar para você e conversar, de fazer uma visita, compreender como é que está. Eu acho que é esse espaço de acolhimento que a gente precisa para a gente poder desenvolver as nossas habilidades como pessoa e como profissional”, ressalta.

No momento, a artista trabalha na primeira coleção autoral de sua marca, que deve ser lançada em dezembro, com oito peças diferentes. A ideia é se lançar como artista, para além de fornecedora, e abrir uma fábrica-escola em Massapê no próximo ano, como expansão do negócio, com foco na empregabilidade de pessoas LGBTQIAP+ da região.

“Meu negócio é crescer, mesmo, pra ajudar muita gente, em muitos lugares”, afirma. “Eu vim de lá e preciso mostrar pras pessoas que é possível dar certo. É um sonho grande, mas deixou de ser um sonho há pouco tempo atrás, quando virou uma meta”, completa.

Projeto aposta em novos talentos

Artista, designer e diretora criativa, Wendy Candy, 23, chegou à Casa de Andaluzia em 2022, buscando aperfeiçoar os conhecimentos em moda e criar oportunidades para botar seus projetos autorais na rua. Achou que seria apenas mais um curso, mas se surpreendeu: ali, diferentemente de outros espaços que já tinha ocupado, se sentia abraçada, protegida da transfobia.

“Para mim foi muito, muito especial, porque acho que o curso foi só um primeiro passo. Eles também têm o curso de aperfeiçoamento, então você vai se construindo”, explica. Hoje, a estilista toca dois projetos: o coletivo Preta Chic, que lidera junto a duas amigas e um amigo, e a marca Studio Swendys, lançada oficialmente neste mês.

Filha de costureira, Wendy conta que conseguiu, através do apoio, ressignificar sua relação com a moda, uma paixão que vem da infância, de dentro de casa. “Eu venho da periferia, onde a gente tem a ideia de que moda é uma coisa muito distante, cara e não dá dinheiro”, conta. “Para mim, hoje, eu uso a moda como uma grande ferramenta de propagar minha arte através de peças”, completa.

Ex-aluna da Casa de Andaluzia, a jovem Maria Rúbia Souza Cruz, 21, também tem descoberto novas formas de expressar seus talentos dentro e fora das paredes da associação. Formada na primeira turma deste ano, a artista autodidata agora realiza o sonho de infância de trabalhar com arte, por meio da criação de roupas e acessórios que têm como base o upcycling

“São tecnologias que eu acho interessante de se usar, porque gera uma renda de uma coisa que seria um resíduo”, comenta. O primeiro look foi desenvolvido em novembro do ano passado, em uma oficina do Centro de Design do Ceará, inspirado na saudade que sentia da avó, Maria do Carmo, que havia partido há poucos meses. 

Até então, Rúbia não sabia nem operar uma máquina de costura, mas conseguiu colocar tudo de si – com ajuda de muitos alfinetes – e criar uma peça original que daria origem a um novo caminho.

Eu entendo que meu corpo é político. Os lugares que eu acesso são negados a muitas pessoas como eu. Irmãs minhas que estão na rua, que estão ‘destinadas’ a trabalhar na rua. A expectativa de vida pra gente é de 32, 33 anos, e eu realmente quero quebrar isso. E eu sei que eu tenho uma rede de apoio: Andaluzia é isso, uma casa de apoio."
Maria Rúbia
Artista e diretora da Areal

Atualmente, ela se prepara para lançar a primeira coleção de sua marca, a Areal, com o apoio da incubadora de negócios da Casa de Andaluzia, enquanto celebra outro passo transformador: no fim deste ano, próximo ao seu aniversário de 22 anos, ela completará um ano de transição. Para a artista, o avanço no trabalho artístico e a redescoberta de si têm caminhado juntos – uma trajetória bonita e necessária.

“É tudo muito recente, e não é algo que eu tenho nenhum receio ou vergonha de falar, porque eu entendi que quando você faz as pazes consigo mesma, com a sua criança, parece que a vida, o universo só está esperando você decidir de qual lado está. E tudo começa a andar progressivamente”, comemora.

A primeira coleção da Areal, destaca Rúbia, vem como uma mensagem, uma plataforma. A coleção terá cerca de doze acessórios autorais e deve ser lançada até o fim do ano – e a estilista já pensa em criar uma nova linha da marca, no futuro, com calcinhas para mulheres trans. 

“Eu realmente quero que elas consigam ter conforto, se sentir sexys e confiantes, e quero atender todos os tamanhos, todos os tipos de corpos”, conclui.

Como participar

A Casa de Andaluzia abre inscrições para o projeto “Costurando Vidas” duas vezes por ano, em janeiro e julho. As turmas acontecem às terças e quintas-feiras e às quartas e sextas-feiras, das 9h às 13h.

A cada semestre, 25 alunos são selecionados – apesar do foco na população trans e travesti, as formações também são abertas a outras pessoas da população LGBTIAP+ e a mulheres cisgênero em situação de vulnerabilidade. No momento, as inscrições estão suspensas, mas é possível se cadastrar na lista de espera dos cursos.

Para mais informações, acompanhe o trabalho da Casa:
Instagram – @casadeandaluzia 
Facebook – /casadeandaluzia