Cearenses rememoram legado de Ricardo Brennand, colecionador e incentivador cultural pernambucano

Falecido no último sábado (25), empresário e criador de um dos mais importantes institutos para as artes no Brasil deixou vasta contribuição à cultura nacional

Poderia ser somente um brinquedo. Mas nas mãos do ainda tão jovem Ricardo Brennand, foi o começo de uma intensa paixão pelas artes e o exercício de colecionar. A história é famosa: aos 12 anos, ganhou do pai um canivete, o qual guardava com imenso carinho.

Passado o tempo, notou que o pequeno objeto havia lhe despertado para algo maior, vontade de reunir tudo aquilo que constitui a história de si e do mundo. Tornou-se, assim, um dos maiores nomes da preservação cultural do País, cujo legado não se encerra com a lamentável partida.

Ricardo faleceu na madrugada do último sábado (25), no Recife, aos 92 anos. Pernambucano de Cabo de Santo Agostinho, região metropolitana da Capital, foi vítima de complicações do novo coronavírus, que o levaram à internação na Unidade de Terapia Intensiva (UTI) do Real Hospital Português, onde estava desde o dia 19. O corpo foi cremado no Cemitério Memorial Guararapes, no Grande Recife.

Ao passearmos pela trajetória de Brennand, vemos que tudo guarda uma singela grandiosidade: simples do ponto de vista da personalidade do homem; gigantesca pela fartura e importância do que construiu, a começar pelos laços familiares – esposa, oito filhos, 23 netos, 48 bisnetos e uma tataraneta. Além disso, no campo profissional, criou inúmeras indústrias, de cimento, aço, vidro e açúcar. Um vasto império.

Mas foi pela dedicação em reunir valorosos objetos que o empresário mais se destacou, sendo um irrestrito incentivador das artes. Uma prática fomentadora de muitas realizações, as quais transbordaram as fronteiras de onde vivia e chegaram a outros territórios. No Ceará, por exemplo, são vários  a evocar o espírito visionário e agregador de Ricardo. 

Artista plástico autodidata e premiado em diversos salões no País e exterior, José Guedes destaca que o fato de um canivete ter dado início a uma tão profunda imersão na arte por parte dele, fazendo-lhe caminhar de um empresário de sucesso a imprescindível homem de cultura, é a síntese perfeita da rica herança deixada.

“Sua ousadia, paixão e espírito empreendedor, que resultaram na magnífica e criteriosa coleção que formou, são legados de extrema importância. Ricardo Brennand faz parte do grupo seleto de imprescindíveis da nossa cultura”, situa.

“Um dos principais focos da coleção que mantinha é o período holandês no Brasil. Portanto, o maior diálogo que estabelece com o Ceará é com a coleção da Fundação Edson Queiroz. Se juntarmos esses acervos com as obras de Frans Post que tem, além de importantes documentos, livros e outras pinturas dessa época, teríamos a exposição dos sonhos referentes ao período”.

Alcance

De fato, o acervo arquitetado por Brennand é incalculável no que toca a várias questões, sobretudo histórica. É dele uma coleção de mais de 5 mil armas brancas de todos os continentes, incluindo espadas cravejadas com pedras preciosas e brilhantes, além de armaduras, miniaturas, canhões, chaves e relógios, objetos dos mais diferentes lugares e épocas reunidos num verdadeiro castelo pelo critério do amor à memória.

Cada peça pode ser vista no Instituto Ricardo Brennand (IRB), espaço cultural sem fins lucrativos inaugurado em 2002. Localizado nas terras do antigo engenho São João, no bairro da Várzea, capital pernambucana, ocupa uma área de quase 78 mil m², cercada por uma reserva de mata atlântica preservada.

Dentre as instalações encontradas por lá, estão o Museu Castelo São João (museu de armas brancas), Pinacoteca, Biblioteca, Auditório, Jardins das Esculturas e uma Galeria, para exposições temporárias e eventos.

É também possível conferir a coleção particular dedicada ao holandês Frans Post (1612-1680), a maior do mundo, com 15 quadros ao todo. O pintor, integrante da comitiva do conde e militar germânico Maurício de Nassau (1604-1679), transferiu para as telas as primeiras paisagens do Brasil do século XVII.

O IRB, portanto, é guardião do maior acervo do período da ocupação holandesa no Brasil, estando na lista dos melhores do planeta e já tendo sido visitado por personalidades como a Rainha Beatrix, da Holanda.

Diretor do Museu da Fotografia Fortaleza (MFF), Silvio Frota diz que já esteve no instituto várias vezes e sempre traz de lá a paz e grandiosidade do ambiente.

“É um local maravilhoso e imperdível. Os jardins são incríveis, as esculturas são lindas, é extremamente agradável de visitar, muito bonito e amplo. Vale a pena viajar só para conhecê-lo, juntamente com o Instituto Francisco Brennand, criado pelo primo de Ricardo”, diz, referindo-se ao ceramista e artista plástico que nomeia o equipamento.

“Como, no Brasil, temos pouquíssimos mecenas, a perda, com o falecimento de Brennand, é grande, fica um vazio. Ricardo realmente dedicou grande parte da vida às artes e à cultura, era um dos maiores colecionadores que tivemos, um benemérito fantástico. O legado que ele deixa para Pernambuco e, principalmente, todo o País, é algo que não tem como mensurar”, completa Silvio Frota.

O gestor do MFF destaca ainda a relevância da cultura educacional desenvolvida pelo IRB, responsável por acolher mais de três milhões de pessoas durante todos esses anos, sobretudo estudantes, por meio de visitações.

Capital humano e cultural

Randal Pompeu, vice-reitor de extensão da Universidade de Fortaleza e e responsável pelo Espaço Cultural Unifor, reitera a fala de José Guedes ao afirmar que a coleção do Instituto Ricardo Brennand se encontra em estreita sintonia com a Coleção Fundação Edson Queiroz. A começar por Frans Post, uma vez que a casa cearense possui quatro óleos e uma gravura do artista.

“Vale ressaltar também a presença de obras de outros artistas na Coleção FEQ que retratam a ocupação holandesa em Pernambuco, como Abraham Willaerts, Andreas Antonius, Bonaventura Peeters, Gilis Peeters e Govaert Flink. E há, ainda, diversos artistas cujas obras estão presentes em ambas as coleções, como Nicolas-Antoine Taunay, Jean-Baptiste Debret, Johann Moritz Rugendas, Henri Nicolas Vinet, entre outros”, elenca.

No que toca a Post, Randal ainda sublinha a presença de uma obra pintada pelo artista, e presente no IRB, que retrata uma vista da área do Fortim de São Sebastião, à margem do Rio Ceará, tomado pelos holandeses em 1637. A pintura é de 1645, o que estabelece, de forma incontornável, a sinergia entre nosso Estado, o pintor e a apurada visão de Ricardo Brennand. 

“Eu o conheci pessoalmente, tive o prazer de encontrá-lo em seu museu. Planejávamos  levar a exposição itinerante ‘Arte Moderna na Coleção Fundação Edson Queiroz’ para o Instituto Ricardo Brennand. Espero que esse projeto ainda possa ser consolidado. Pareceu-me um homem muito agradável, amigo das artes, extremamente generoso por compartilhar com o público seu valioso acervo artístico e histórico”, considera Randal.

E completa: “Sempre que o Brasil perde um de seus mecenas, como Ricardo Brennand, fica uma lacuna considerável na arte nacional. Porém, segundo palavras do próprio Ricardo, sua mulher e seus filhos são solidários a seus sonhos e o sucederão na manutenção do patrimônio cultural engendrado pelo Instituto Ricardo Brennand. Esperamos que assim seja”.