Na terça-feira (29), data escolhida pela Academia Latina da Gravação para divulgar os artistas indicados ao Grammy Latino 2020, RAPadura Xique Chico tinha ido visitar familiares no Distrito Federal. Seu disco, “Universo do Canto Falado” (2020), concorre ao prêmio de "Melhor Álbum de Rock ou de Música Alternativa em Língua Portuguesa". O cearense encarou o feito com orgulho. Entendeu no reconhecimento um sinônimo de reflexão também.
Um dia depois da menção internacional, RAPadura defende o quanto esta oportunidade significa uma vitória de seu povo. “Sabemos o quanto é difícil para o nordestino ser reconhecido. A luta para nós é 10, 100 vezes mais para aparecermos e termos a valorização que merecemos. É um povo guerreiro, que em meio a tantas dificuldades, ainda consegue sorrir e fazer sorrir. É um dom de Deus. É maior do que eu e a música. É o povo, para o povo e para a cultura nordestina”, divide.
Ele nasceu Francisco Igor Almeida do Santos. Viveu a infância em Fortaleza, mais precisamente a realidade da Lagoa Seca, hoje Sapiranga. Aos 13 migrou com a família para o Distrito Federal. Lá, estabelece-se na Planaltina. Como inúmeras outras periferias do País, um lugar abandonado e esquecido. Só lembrado sob o pretexto da violência.
O contato com a música origina da família. O pai era cantor e tinha uma dupla. Pela casa, muito brega, Rauzito e Gonzagão. A dança foi outro componente decisivo. Ganhou prêmio com lambada, dançou em circo. “Onde meu pai ia eu estava com ele”, resgata. Nas idas com a mãe pela Praça José de Alencar conheceu o repente, a xilogravura e o cordel.
“Naturalmente, essa cultura já está em nós. E quando se têm uma guia que te mostra, você consegue uma visão mais ampla. Tem muita gente que nasce no Nordeste e não conhece a cultura nordestina, que não teve essa pessoa para fazer e guiar, mostrar o que é bom, o que é daqui e ter orgulho disso”, defende.
No fim de 1997, época da mudança de Estado, o garoto já tinha o sertão, caatinga e o litoral no coração. O avô, Seu Zé Mucuin, foi uma espécie de alquimista das ondas do rádio. Dele ouviu a informação de que estações AM espalhadas pelo Sertão nos anos 1950 e 1960 captavam rádios caribenhas e jamaicanas. “Tem um dado histórico que muita gente não sabe. O rap ele surgiu na Jamaica e não nos Estados Unidos”, descreve.
Caldeirão
Esse balaio sonoro uniu musicalidades distantes e segue fincada nas raízes do cancioneiro nordestino. “Se você pegar o xote e o reggae, eles têm a mesma célula rítmica. O mesmo estilo, a batida e tudo. O ragga é semelhante ao baião. É a mesma célula rítmica, batida e percussiva”, detalha empolgado em torno de cada expressão musical.
“Universo do Canto Falado” (2020) esgarça toda essa vivência e DNA. No asfalto da Capital do Brasil percebeu a urgência de alimentar-se das origens e raízes. O Hip hop conheceu em Planaltina. Se a violência era realidade, esta manifestação musical simbolizava salvar vidas.
“O hip hop se comunicava com essas pessoas de baixa renda. Com os menos favorecidos. que sofriam o peso da desigualdade e da discriminação racial e social”, reflete o músico.
Presente no Grammy Latino, o álbum reverbera toda um batalha de quase 23 anos na música. Se o trabalho “Fita embolada do engenho - Rapadura na boca do povo” (2010) era mais da rima, o novo álbum precisava do RAPadura cantor. Com mais estrutura para produzir o álbum, o desafio era fazer algo brasileiro, mas que ao mesmo tempo fosse universal.
“Criamos esse 'Universo do Canto Falado' por perceber que nenhuma prateleira da indústria cabia o nosso trabalho. Você não pode rotular porque não tem como. Tem tudo ao mesmo tempo dentro dele. Não estamos em nenhuma prateleira, somos um invasor de prateleira”, descreve o rapper cearense.
Dia 19 de novembro, os organizadores do Grammy Latino anunciarão os vencedores. “Universo do Canto Falado” é essa conjunção de rap, trap, baião, swing, forró, pop e rock. Rima quebrada com mar, sertão e concreto. Conversa com o dito globalizado ao passo que nos entrega o que é tão Nordeste. “É difícil de fazer e exatamente por isso chegou ao Grammy. É único, autêntico, brasileiro e Mundo", argumenta.
O elogiado álbum traz, entre outras pedradas, faixas como “Meu Ceará”, “Saga Cega”, “Quebra-queixo" (com direto a clipe cinematográfico gravado na Paraíba), “Rap Star”, “Desapego” e “Olho de Boi”, essa última com participação da turma do BaianaSystem. Sem vacilo, correndo na navalha, 12 faixas entregues e que ganharam o mundo.
Mensagem
Lançado durante a tragédia da pandemia, “Universo do Canto Falado” era a mensagem necessária em tempos tão nefastos. “Escolhemos lançar esse disco no caos, no momento difícil, pois o nosso povo mais precisa de acalanto, de colo, aconchego, carinho, demonstração de amor e empatia. E de saber que tem gente lutando, erguendo a cabeça, que mesmo com as dificuldades trabalha e enfrenta tudo para que os seres desumanos sejam um pouco mais humanos”, descreve RAPadura.
O Nordeste e o Ceará estão na mira do projeto “Safra Ouro”. O “Volume 01”’ da iniciativa reuniu em disco mais de 60 nomes de artistas do Distrito Federal e entorno. Ele cita os rappers Dav Cena. Fala de MC Charles, coletivo Flowtal junto de Tonhão e Elton Sartre. Galera nova no gás, na luta. Muitos estão por aí e precisam de voz e espaço.
Com o fim da entrevista, o cearense pede mais cuidado dos gestores públicos à cultura. Arte é a única ferramenta de transformação para quem nunca teve nada. Uma sociedade tão desigual só mudará com acesso à cultura. “’Universo do Canto Falado’” é um abraço no Mundo e em todos o seres vivos. Era a nossa missão. O Grammy veio de maneira natural e espontânea. O universo sentiu isso. Viu a importância desse trabalho e que essa mensagem tinha que ser compartilhada. Por isso aconteceu”, conclui RAPadura Xique Chico.