A tentativa de censurar o beijo de dois super-heróis na Bienal do Livro cheira a mofo, como uma revistinha cujas páginas amarelaram. A questão pode ter parecido urgente à Prefeitura do Rio de Janeiro, que mandou retirar os exemplares -mas, nos Estados Unidos, já não há nada de novo em celebrar a diversidade sexual desses personagens.
A história em quadrinhos que escandalizou a prefeitura, "Vingadores - A Cruzada das Crianças", foi originalmente publicada em 2010 no país de Donald Trump. O "polêmico" beijo gay em questão foi dado pelos super-heróis Wiccano e Hulkling, membros da equipe dos Jovens Vingadores.
O prefeito descreveu aquilo como um "conteúdo sexual" impróprio para menores. Tanto Wiccano quanto Hulkling estavam vestidos.
O espanto com o fato de que heróis -homens musculosos vestindo roupas coloridas e apertadas -podem ser gays chega tarde. Eles começaram a sair do armário há mais de duas décadas.
Um dos pioneiros foi o mutante Estrela Polar, da Marvel. Ele deixou clara sua orientação sexual em 1992. Em 2012, o rapaz se casou como namorado Kyle Jinadu, no que foi considerado o primeiro supermatrimônio da história das HQs.
Desde então, quadrinistas ampliaram o colorido da sexualidade de seus personagens. A Arlequina largou o Coringa, vilão do Batman, e deu um beijaço na Hera Venenosa. O debochado Deadpool, por outro lado, virou pansexual. Segundo seus roteiristas, ele sente atração por todo o mundo.
Há um valor evidente em retratar as diversas orientações sexuais nas revistinhas. Dessa forma, as páginas dos gibis reproduzem de maneira mais fiel a variedade de seus leitores. Se não for pela justiça social, é ao menos pelo interesse capitalista. Os gibis com beijos ou casamentos entre heróis do mesmo sexo se esgotam, numa era em que pouca gente ainda compra HQ.
O fenômeno ocorre em paralelo à valorização de personagens negros e mulheres nos filmes de heróis, caso de "Pantera Negra",do ano passado, e "Capitã Marvel", deste ano. Personagens muçulmanos e latinos também ganham espaço.
O processo, sim, às vezes encontra barreiras. Há, eventualmente, os super-vilões da vida real que fazem cara feia diante de super-heróis homossexuais. Gente que se importa com quem um personagem de revistinha dorme.
Foi o caso, por exemplo, de quando a editora Marvel decidiu revelar em 2015 que o mutante Homem de Gelo é gay. A revelação de sua sexualidade não foi exatamente voluntária. Sua colega Jean Grey, que tem o poder de ler mentes, bisbilhotou seu cérebroe descobriu a informação. "Bobby, você é gay", ela avisou, dando de ombros.
Alguns fãs, no entanto, ficaram fulos. O personagem existe desde 1963 e foi sempre tratado como heterossexual. Sua homossexualidade incomodou porque, de certa forma, contrariava as histórias anteriores em que o Homem de Gelo tinha tido relações com mulheres. Mas os quadrinistas não voltaram atrás - e lembraram os leitores de que tem gente que passa anos no escuro mesmo. Nada de tão incomum.
Fãs celebraram, naquele episódio, o fato de que justamente um membro dos X-Men era gay. Afinal, os heróis mutantes passam a vida lutando para serem aceitos pelos humanos, algo com que os leitores homossexuais podem se identificar.
A homossexualidade do Homem de Gelo teve, ainda, bastante impacto por que o personagem é um dos membros originais dos X-Men,um dos carros-chefe da Marvel. Ao contrário do Wiccano e do Hulkling, cujo beijo o prefeito quis censurar, ele é um ícone das HQs. Sua sexualidade importa mais.
Dessa maneira, o anúncio foi visto como um possível sinal de que a editora está se modernizando. Pode ser o prenúncio, afinal, para que um dos grandes heróis da casa seja gay. Finalmente, aliás. Há inclusive boatos de que o Homem-Aranha pode ter um romance gay nos filmes. O ator Tom Holland, que interpreta o super-herói saltitante nas telonas, disse que não vê problema algum nisso. Essa, sim, seria uma novidade nas revistinhas.