Uma petição virtual reivindica à Universidade Federal do Ceará (UFC) a devolução ou a aquisição formal da obra “Homens Trabalhando”, concebida em 1977 e, desde esse período, sob guarda provisória da instituição.
A iniciativa é de Flávia Muluc, pesquisadora e socióloga da arte. Ela redigiu o documento que está circulando pela internet desde esta terça-feira (20) – até o fechamento desta reportagem, com 80 assinaturas.
A estudiosa conta com o apoio dos artistas Rafael Limaverde e Hélio Rôla. Também foi lançado um perfil no instagram junto à petição, cujo objetivo é tornar pública a história por trás do quadro e reivindicar um posicionamento da UFC.
O trabalho em questão é resultado da pintura coletiva de um painel, realizado por cinco artistas da Escola do Pirambu: Claudionor, Chica da Silva, Ivana, Garcia e Babá – estes dois últimos os únicos autores vivos do painel.
À época da feitura do projeto, em março de 1977, Hélio Rôla, Gilberto Brito e David Silberstein idealizaram a mostra “Pintores do Pirambu”, congregando os artistas que trabalhavam diretamente sob a tutela do pintor e desenhista Chico da Silva (1910-1985).
Em virtude do XXVII Salão de Abril, o grupo realizou a performance “Homens Trabalhando” no Palácio da Luz – hoje sede da Academia Cearense de Letras, na Praça dos Leões, centro de Fortaleza. A ação se deu exatamente na pintura coletiva de um quadro de grandes proporções, medindo 4m x 2m, com registro em foto e vídeo, conforme consta no livro “Chico da Silva e a Escola do Pirambu” (Edições IOCE, 1985), do artista plástico cearense Roberto Galvão.
O próprio Chico saiu do hospital onde estava internado naquele instante e integrou-se aos seus discípulos na confecção da obra. O artista, ao fim da pintura do grupo – realizada de forma aberta ao público, durante cinco dias – assinou o painel de modo simbólico.
No texto da petição, consta que, após a finalização do Salão de Abril e prestes a realizar uma viagem, Hélio Rôla, então professor da UFC, pediu para que o extenso painel ficasse guardado provisoriamente na Biblioteca da Faculdade de Medicina até que seus donos, os autores, definissem o destino que seria dado à obra.
Nesse ínterim, Hélio permaneceu fora do Brasil por dois anos, em razão de um pós-doutorado na França. Retornando ao País, conforme expressa o documento virtual, “tentou inúmeras vezes reaver a obra para restituí-la aos seus donos de direito, mas não obteve sucesso”.
Tentativas de diálogo
Em 2020, quando foi celebrado o “Ano Chico da Silva” – instituído pela Prefeitura de Fortaleza, por meio da Secretaria Municipal da Cultura (Secultfor) – o assunto foi pautado novamente, no 71º Salão de Abril.
“A esperança era de que a questão fosse resolvida durante o Seminário ‘Chico da Silva: Vida, Obra e Arte Contemporânea’, evento integrante da programação do salão, com participação dos integrantes do Grupo de Estudos Chico da Silva e Pintores do Pirambu: Hélio Rôla e Gilberto Brito’, detalha a petição.
“Em uma das atividades do seminário, houve inclusive a participação de representante do Museu de Arte da Universidade Federal do Ceará (Mauc/UFC), mas não houve nenhum avanço no sentido esperado”, continua o texto.
Ao Verso, Flávia Muluc conta que, de fato, nos últimos 44 anos, Hélio Rôla tentou inúmeras vezes reaver o painel para devolvê-lo aos pintores. “Apesar disso, a UFC sempre alegava que não tinha um documento de que o painel pertencesse aos artistas. Questionada, afirmou também que não havia nenhum documento que comprovasse a aquisição da obra pela Universidade”, diz.
Ela destaca que, sob outra frente, Hélio igualmente tentou, com muita insistência, a solicitação por meio da direção do Mauc e do gabinete do reitor, também sem nenhum progresso. “Simplesmente não davam resposta. Ele chegou a protocolar um processo, que foi arquivado sem maiores explicações”, situa.
Reparação histórica
Segundo a pesquisadora, o objetivo principal é reparar um erro histórico a partir da aquisição formal da obra ou da devolução do painel aos donos de direito.
“Hoje, museus do mundo todo estão devolvendo obras que foram apropriadas indevidamente, desconstruindo essa perspectiva colonial. Acaba sendo um processo educativo”, observa Flávia. “Caso não seja possível um diálogo qualificado com a UFC, o movimento pretende tomar as medidas judiciais cabíveis e já conta com assistência jurídica de profissionais que se colocaram à disposição para assumir a causa em prol dos artistas”.
A socióloga percebe que a movimentação em torno do assunto está crescente, reflexo de um processo de sensibilização da nova geração sobre a importância da Escola do Pirambu, capitaneada pelo respeitado Chico da Silva.
Semelhante perspectiva é alimentada por Rafael Limaverde. O artista visual cearense explica que a história de Chico e de seus alunos sempre esteve envolta "em muitas controvérsias e injustiças".
“Isso tudo gerou uma falta de reconhecimento absoluta da importância que esses artistas da Escola do Pirambu tiveram na história das artes do Ceará, bem como na própria construção da obra do Chico”, analisa.
“A restituição desse painel ou mesmo a aquisição por parte da UFC, creio eu, é uma forma de não só devolver os direitos de posse ou do valor da obra a seus devidos proprietários, mas também de reparação histórica desses artistas. Devemos reconhecer Babá e Garcia, e os demais pintores da Escola do Pirambu, como legítimos herdeiros de um dos grandes processos artísticos de nossa terra”, defende.
Retorno
Em nota, a Universidade Federal do Ceará comenta acerca da questão, considerando o tempo do referido acontecimento.
“Por ser a presença do referido painel artístico na Universidade Federal do Ceará um fato que já ultrapassa quatro décadas, a administração da Instituição informa que somente se pronunciará sobre o tema caso seja instada por canais oficiais e por interessados que apresentem razões de fato e de direito sobre o painel. Logo, sem mais a declarar por ora”, informa.