A mulher que virava lobisomem e outras histórias da cidade submersa do Ceará

“Memórias interrompidas”, da jornalista Lianne Ceará, mergulha no universo de Jaguaribara como forma de reviver, no presente, o município tomado pela água

Não dava para contar as pessoas na rua. Ficava tudo cheio. Mas cedo da noite algo trancava os jovens em casa. Eram as histórias de lobisomem. Uma, em especial, assombrava mais. Moradora da cidade, Alevina virava fera nas datas de lua cheia. Ela teria sido atacada a tiros na cabeça por Fransquinho Cornélio, um antigo morador, após sangrenta e disputada luta.

No outro dia, a mulher apareceu agonizante, com um tiro no olho. Morreu em menos de 24 horas. Dizem que isso aconteceu quando Jaguaribara – distante 162 quilômetros de Fortaleza – ainda era Vila Santa Rosa, ou seja, antes de ser emancipada como município.

Está tudo documentado no livro “Jaguaribara de Santa Rosa”, de Francisco Isac da Silva, poeta popular e morador da cidade. O causo ganha cores também na recente obra “Memórias interrompidas”, da jornalista Lianne Ceará, 23, criada no município que completa 25 anos de inauguração neste domingo (25).

O festejo celebra a “nova” Jaguaribara – projetada após a “velha” ter sido inundada pelo açude Castanhão. “No livro, trabalhei, sobretudo, com testemunhos orais das pessoas. E muitas delas também me relataram sobre esse e outros casos de pessoas que, possivelmente, viraram lobisomem”, situa Lianne.

Hoje em dia, pouco se fala desses mitos e histórias populares. “Memórias Interrompidas”, assim, tenta resgatá-las e contá-las aos jovens do local justamente para que não se percam. O lançamento da obra aconteceu no último sábado (24), no município de origem; em Fortaleza, será em 6 de outubro, na Livraria Coração Selvagem. 

Clima eleitoral

Não só de seres fantásticos vive o projeto. Curiosidades envolvendo o clima eleitoral também integram as páginas – ilustradas por Aryane Siebra. As ruas hoje submersas de Jaguaribara eram as primeiras a saber do resultado das eleições, por exemplo. Antes de serem eletrônicas, as urnas eram levadas para a contagem em Jaguaretama, cidade da qual a zona eleitoral de Jaguaribara faz parte até hoje.

“O povo, que costumava dormir cedo, não dormia – durante a noite, o ‘corredor da morte’, como era chamado o corredor de eleitores que se formava ao redor da passagem do rio, a Pinguela, esperava eufórico a chegada dos carros que vinham de Jaguaretama com o resultado. Ao saberem, os perdedores começavam a ir embora debaixo de vaias dos vencedores, que comemoravam madrugada adentro”, narra Lianne no livro.

Segundo ela, dar destaque à informação hoje é oportuno para ressaltarmos o anacronismo de cenas feito essa – votar no papel, aguardar até de madrugada para saber os resultados, receber o resultado com insegurança. “Acho que é importante ressaltarmos essa realidade para lembrarmos o quanto é bom e eficaz o sistema eleitoral que temos atualmente”, diz.

Não à toa, a obra surgiu para provocar essas reflexões e sobretudo dar voz às pessoas do município – protagonistas dessa história cujo ápice aconteceu há mais de 20 anos. Todo o projeto do livro, inclusive, começou muito antes de Lianne iniciar as pesquisas para o fim. Nascida em Fortaleza, mas criada na cidade do interior, a jornalista sempre teve gosto por causos que ouvia nas calçadas, contados pela família.

Crescendo, percebeu que as narrativas não podiam se perder. Na faculdade de Jornalismo, já no primeiro semestre iniciou a realização de trabalhos sobre Jaguaribara. A culminância de todos os passos realizados na graduação é exatamente “Memórias Interrompidas”, fruto do Trabalho de Conclusão de Curso na Unifor.

Questionada sobre o que foi mais importante da construção da obra, a autora não titubeia: ouvir os testemunhos das pessoas que foram realocadas e passaram pelo processo de ruptura com a antiga cidade de diversas formas – de convívio social, psicológico, localização etc. 

“As descobertas vieram muito dos dados que costuro na narrativa com as histórias dos moradores. Dentre elas, o fato de que a nova sede da cidade foi projetada para 75 mil habitantes – dez vezes mais que a quantidade de moradores da antiga. Resultado: hoje, o município é repleto de espaços de convívio social vazios”.

Outra novidade foi quanto à economia de Jaguaribara: em 1980, o censo demográfico registrou que 82% dos jaguaribarenses não recebia sequer um salário mínimo. Quase 20 anos depois da mudança e alguns milhares de habitantes a mais, em 2019, o IBGE apontou que, com cerca de 11 mil habitantes, 90% não tinha ocupação formal.

“Jaguaribara é um município só – por isso, escrevo o ‘nova’ e o ‘velha’ com N e V minúsculos, respectivamente. É um pedaço da história do Ceará, do Nordeste, do Brasil. Mas as narrativas que rondam a cidade tratam de assuntos globais: memória, ancestralidade, água e poder no sertão, relações de poder”.

Entre o avanço e o fracasso

Ainda que a nova sede tenha sido planejada para ser um “modelo” para todo o Estado, fato é que, na visão de Lianne, ela não passa de um fracasso – “e não sou eu quem acho isso, mas os dados confirmam”. O município foi criado para ser uma cidade autossustentável, com emprego e renda, justificando a projeção para dez vezes mais habitantes. Esse espaço todo, contudo, não foi necessário. 

“Pelo contrário: para muita gente, a nova sede é sinônimo de desenvolvimento e progresso. É a primeira cidade projetada do Ceará, mas, infelizmente, a arquitetura e a ‘tecnologia’ com que ela foi pensada não abarcaram sentidos imateriais importantes para a convivência da população que estava antes da mudança”.

A sensação é de que pensaram no futuro dissociando-o do passado. O título “Memórias Interrompidas” reforça essa questão, afirmando que tais memórias devem ser continuadas, mesmo em uma nova realidade. “A nova Jaguaribara é linda e merece atenção. Merece ser ocupada, habitada, investimentos”.

Para Lianne – que atrasou a produção do livro devido à pandemia de Covid-19 – por vezes foi doloroso mergulhar em cada vivência. Ao mesmo tempo, foi prazeroso. Ela chorou, sorriu e se revoltou em igual medida. “Entendo a necessidade em falar sobre isso, mesmo tendo acontecido há duas décadas. As pessoas não conhecem essa história, e é isso que me impulsiona. Trajetória contada em capítulos bastante sugestivos: “As Casas”, “As Ruas”, “As Praças”, “Os Rios”, “As Igrejas” e “As Cidades”.

Antes de dividir os lugares que nomeiam as seções em categorias da Antropologia, cabe um detalhe: a jornalista foi em busca de atores sociais desses lugares. Para o capítulo “Os Rios”, por exemplo, entrevistou uma lavadeira; para “As Igrejas”, uma freira que foi líder comunitária da resistência contra o Castanhão. 

Tais personagens, muitas vezes, apareciam por indicação de outros. São pessoas comuns de Jaguaribara que tiveram suas vidas completamente modificadas pelo Castanhão e pela mudança de sede da cidade. Uma, em específico, tomou a autora pelo braço porque demonstrou exatamente essas “contradições do progresso”.

Foi Ana Cláudia, moradora da Baixa dos Cajueiros, região da zona rural de Jaguaribara. Ela mora a 500 metros do Eixão das Águas – responsável por trazer água para o Porto do Pecém e Fortaleza – mas não tem água encanada em casa.

“Ninguém da Baixa dos Cajueiros tem. E muitos deles tiveram que receber indenização para sair do caminho do Eixão das Águas. Que progresso é esse?”, provoca a autora. A gente se pergunta também.


Serviço
Lançamento do livro “Memórias interrompidas”, de Lianne Ceará
Em 6 de outubro, às 18h, na Livraria Coração Selvagem (R. dos Tabajaras, 450 - Praia de Iracema). Gratuito. 


Memórias interrompidas
Lianne Ceará

Editora Caminhar
2022, 100 páginas
À venda no site da editora a partir do dia 27 de setembro