Olhe para a sua casa e tente observar para além da estrutura física. Considere as paredes, as janelas, a posição dos móveis e até possíveis rebocos, mas não pare somente aí. Busque enxergar em cada um desses elementos as vivências e construções íntimas que soergueram o alicerce, desenhando a fisionomia tanto do lar quanto dos que nele residem.
Há pouco mais de cinco anos, foi esse exercício de alquimia visual que guiou os passos de Bruna Bortolotti. Autora da pesquisa “Inventário - Construir uma casa com palavras” – apresentada ao término da graduação em Arquitetura e Urbanismo pela Universidade Federal do Ceará (UFC) – ela se voltou para o tempo em que dividiu morada com o avô, Sr. Bonfim, a fim de tecer reflexões sobre o modo como construímos os espaços de forma subjetiva.
“Meu avô era um inventor e um ourives autodidata, de Redenção (CE). Nos muitos anos em que convivi com ele, precisei produzir algo contemplando a Arquitetura e comecei a pesquisar sobre o espaço e a relação deste com os objetos que ele produzia, como inventor”, detalha a ourives, artista visual e arquiteta e urbanista cearense.
Agora, depois de apresentado o trabalho, ela e a também artista visual e arquiteta e urbanista Gabrielle Tavares se debruçam novamente sobre o estudo em questão como meio de exibi-lo ao público por meio da instalação “Invenção do meu avô”, um desdobramento da pesquisa iniciada há meia década. A obra é uma das que integram o 72º Salão de Abril, principal salão das artes do Ceará, cuja abertura acontece nesta quinta-feira (29), às 16h.
O momento será fechado ao público, contudo a visitação presencial inicia já na próxima terça-feira (3), seguindo até 16 de setembro, de forma gratuita e seguindo os protocolos de segurança contra a Covid-19.
Todas as criações – abrangendo fotografia, pintura, escultura, desenho, colagem, performance, videoarte e instalação – estarão sediadas no Centro Cultural Casa do Barão de Camocim, equipamento gerido pela Prefeitura de Fortaleza por meio da Secretaria da Cultura do município (Secultfor). O evento conta com a parceria do Instituto Cultural Iracema.
Entre invenções e reflexões
Ao todo, 35 artistas cearenses participam desta edição do Salão de Abril. Os trabalhos foram selecionados pela equipe técnica e curatorial da mostra – formada por Ana Cecília Soares (CE), Luise Malmaceda (SP) e Luciara Ribeiro (SP) – diante de 221 obras inscritas. A quantidade de escolhidos é superior a dos anos anteriores, quando 30 nomes eram selecionados. O valor da premiação será equiparado entre todos os artistas, sendo destinado R$5 mil para cada.
Ultrapassando o componente monetário, ganham força as intensas reflexões que a exposição fomenta, algo que Bruna Bortolotti enfatiza ao esmiuçar detalhes do trabalho de sua autoria e de Gabrielle Tavares, o primeiro assinado pela dupla a ser selecionado para a mostra.
Segundo ela, o nome da instalação se deu em consonância com uma invenção do já referido avô de Bortolotti, Sr. Bonfim, primando por uma mescla de painéis com plantas baixas da casa dele junto a algumas invenções de autoria do artista. “São 26 invenções que eu cataloguei e coloquei nesse painel”, contabiliza a neta.
“A instalação traz à tona uma discussão sobre o espaço, de como a gente o constrói de maneira subjetiva, uma vez que as plantas baixas – apesar de serem um código usado na Arquitetura – compõem a instalação trazendo muito mais a localização de invenções do que elementos construtivos em si”.
Um prato cheio para que ganhem volume ponderações a respeito do que um ambiente representa para cada pessoa e de como nós o moldamos não fisicamente, mas a partir de processos abstratos. “Além disso, enfoca numa visão sobre criadores que normalmente ficam às margens do circuito das artes e do circuito do design, que era o caso do meu avô. Ele não tinha uma formação em nenhuma dessas áreas, por isso trazemos muito mais uma discussão a respeito de como se dão os processos criativos fora dos meios tradicionais (academia, indústria etc.)”, sublinha.
Integrante da equipe curatorial da mostra, Luise Malmaceda situa que a mais recente edição do Salão de Abril chega com esse fôlego expresso por Bortolotti, abraçando um grupo de artistas muito conhecedores de que não há distinção entre arte e política. “Isso fica bastante claro nos trabalhos selecionados, ainda que não haja uma linha que perpasse todas as obras contempladas neste ano”, considera.
“Nós recebemos 221 portfólios, diversas propostas, e olhamos tudo com muito cuidado e atenção. Não as selecionamos de forma curatorial, selecionamos pelos projetos, pela pesquisa e pela relevância dos questionamentos que geram reflexões sobre os nossos debates contemporâneos”, completa.
Como exemplo, ela cita trabalhos a respeito de algumas situações vividas por todos durante este instante pandêmico, como a solidão, o isolamento, a exaustão e a precariedade. Também há discussões relacionadas à reparação histórica e violências contra a população LGBTQIAP+. “São debates que acabam perpassando, que a gente tem como vetores e são discutidos em sociedade. Isso também aparece nos trabalhos que estão aqui”.
Processo compartilhado
Também membro da curadoria do evento, Luciara Ribeiro explica que a apresentação das obras – considerando a exposição física – teve um processo compartilhado entre quem fez a seleção e curadoria dos trabalhos e Virginia Pitta, responsável por pensar e organizar o mapa expográfico da mostra.
“Então temos ao mesmo tempo esse pensamento que envolve a seleção dos artistas e que de alguma maneira há um eixo de aproximação entre eles por meio da materialidade dos trabalhos, das temáticas apresentadas e dos processos artísticos desenvolvidos”, diz.
Existe outro fator que vem do trabalho de Virginia Pitta, referente ao olhar da profissional em conhecer os territórios e observar como as obras se adaptam a cada espaço, promovendo diálogos que muitas vezes só se dão quando enxergamos as peças diante de nós.
“A apresentação teve esse processo compartilhado que eu acho muito rico para pensar também as vias e as diversas compreensões de curadoria que a gente pode ter nesse momento, e que o Salão de Abril pode apresentar”.
Ao refletir sobre os desafios para selecionar apenas 35 artistas diante dos mais de 200 trabalhos inscritos, Luise Malmaceda frisa que foram priorizadas as obras que deram às curadoras uma noção de processo, fazendo com que elas conseguissem entender o que o artista vem pesquisando e como esse estudo pode nos ajudar a pensar sobre o presente.
“Eu acho que a arte é um campo importante para refletirmos sobre os problemas atuais. Isso aparece nos trabalhos selecionados. Nossos interesses de pesquisa enquanto curadoras também nos levam para esse lugar de reflexões. Temos temas sociais muito presentes nesta edição do evento”, reitera.
Igualmente chamou atenção de Malmaceda a qualidade dos trabalhos inscritos, levando em conta a idade dos artistas. De acordo com ela, isso é um reflexo da atuação dos equipamentos culturais da Capital, uma vez que elas identificaram aqui muitos lugares públicos de formação capazes de possibilitar que artistas de diversos marcadores sociais consigam acessar esses espaços, produzir e participar de eventos como o Salão de Abril.
“Como produzir arte nesse momento?”
Ao se debruçar sobre as urgências da presente edição do Salão de Abril, Luciara Ribeiro é enfática: existem pensamentos que atravessam uma multiplicidade de experiências suscitadas com a mostra, sendo impossível deixar de mencionar o momento crítico vivenciado a partir da pandemia de Covid-19.
Este, conforme observa, é um ponto que aparece de diversas maneiras na exposição – não apenas como temáticas de trabalhos, mas também tentando responder à pergunta: “Como produzir arte nesse momento?”.
“Como produzir arte em um momento em que tudo está direcionado à virtualidade? São reflexões que passam a ser pensadas e adaptadas por meio de estratégias. Isso altera os rumos e as narrativas. Outro ponto é a precariedade desse trabalhador das artes. Como produzir em um momento em que temos espaços fechados? Quais são os fomentos possíveis para que esses artistas continuem atuando, sendo tão jovens? Acho que esses e uma série de outros questionamentos em torno dessas problemáticas estão presentes nesta edição do Salão de Abril. O evento é uma possibilidade, é um caminho”.
Estrada igualmente composta pela ótica agregadora e perspicaz de Célio Celestino. O artista visual integra a mostra com a série “Tecituras”, trabalho que transita entre a fotografia e a colagem – esta o expediente habitual do cearense, por meio do qual ficou mais conhecido no contexto cultural do Estado. Com uma prática inteiramente permeada pela ressignificação de imagens do passado, algo que o faz garimpar livros e enciclopédias antigos em sebos e antiquários da cidade, por exemplo, Celestino engendra mais uma criação envolvendo esse componente, embora consiga ir além ao combiná-lo com a fotografia.
Para a série “Tecituras”, ele começou a pesquisar a possibilidade de criar colagens sem utilizar a cola. “O que eu fiz? Peguei imagens do século passado e juntei com imagens mais atuais. Assim, na feitura de cada peça que compõe a série, fui fazendo recortes bastante precisos, na horizontal e na vertical, criando entrelaçamentos entre essas duas imagens – as do passado e as de hoje”, dimensiona.
Após concluir a primeira e a segunda obra do projeto, o artista percebeu que havia ali uma relação muito forte com a cestaria indígena – técnica utilizada pelos povos originários na fabricação de cestos, a fim de transportar objetos ou armazenar alimentos. Também notou uma ponte possível com a criação de tecidos, levando em conta a artesania do bordado, com essa mesma dinâmica do entrelaçamento.
“Fui percebendo que, quando eu entrelaçava os filetes de papel um no outro, conseguia fazer com que as duas imagens surgissem ao mesmo tempo. E isso gerava um jogo muito interessante, porque ao mesmo tempo em que elas apareciam juntas, se faz necessário um tempo para entender que ali existe uma configuração de duas imagens, uma vez que elas se apresentam um tanto fragmentadas. Existe todo um mistério nesse entrelaçamento”, diz.
Raízes ancestrais
Desenvolvendo a obra desde janeiro deste ano, Célio Celestino situa que, para ele, essa é uma pesquisa muito cara, detentora de grande valor afetivo. Isso porque, à medida que foi aprofundado olhares e saberes, lhe veio à tona muitas lembranças, algo que culminou em uma viagem aos álbuns de família.
“A minha família por parte de mãe faz parte da tribo dos Tapebas, de Caucaia; já os antepassados do meu pai são os negros do Maciço de Baturité. Logo, eu fiquei muito contente porque senti que, de alguma forma, eu estava trazendo de volta uma artesania que fazia parte de uma prática cotidiana dos meus ancestrais”.
Ao atualizar essas imagens do passado, o artista percebe que a arte contemporânea tem realizado seu ofício de forma visceral, trazendo à tona uma multiplicidade de questões em um preocupante momento, em que se espraiam tentativas de apagamento de horizontes quase esquecidos, caídos na obsolescência. “Por isso gosto de trazer esse anacronismo entre passado e presente, criando apontamentos para o futuro”, destaca.
“Tecituras”, nesse sentido, é um modo de trabalhar a fotografia expandida, ampliando a linguagem fotográfica para além da utilização de uma câmera, criando novas possibilidades. Além disso, não deixa de ser curioso o componente metalinguístico do trabalho, visto que encara o tecer enquanto forma – nesse entrelaçar de recortes horizontais e verticais; e enquanto mescla entre passado e presente, imagens antigas e atuais, de reminiscências ancestrais com lembranças recentes.
Os diálogos que a série promove, portanto, são inúmeros: na medida em que traz à tona questões cotidianas do povo negro; no momento em que suscita aprofundamentos acerca de quem somos, de quais são as nossas raízes, da força da ancestralidade; e quando potencializa maneiras de agradecer àqueles que vieram antes de nós.
“É uma busca por essa raiz cultural mesmo brasileira, que tem algo do que eu chamo de ‘entrelaçamento cósmico’. É esse reencontro dos nossos povos indígenas e africanos gerador de uma possibilidade ímpar de configuração da identidade brasileira que, na atualidade, vem tentando se apagar, tentando calar essas vozes. O trabalho busca fortalecer isso: quebrar a corrente do passado e fortalecer uma corrente nova, uma corrente simbólica, de união”, defende Célio Celestino.
Homenagem a Raimundo Cela
Celestino também sublinha que a série “Tecituras” estabelece uma troca com a esmerada produção do sobralense Raimundo Cela (1890-1954). O pintor, desenhista, gravador, professor e engenheiro é o grande homenageado desta edição do Salão de Abril, algo que suscitou novos encaminhamentos para a arte de Célio.
“Quando eu vi que o Cela seria homenageado pelo Salão, pensei muito nessa questão dos artesãos e das artesãs, dos pescadores, das bordadeiras, que são temas muito recorrentes no trabalho dele; ao mesmo tempo, escolhi imagens que tinham essa relação com gestos cotidianos, com o dia a dia de pessoas comuns”, explica.
No posto de integrante da equipe curatorial do evento, Luise Malmaceda situa que haverá um seminário promovido pela mostra enfocando o trabalhador tradicional que Raimundo Cela tanto retratou, em especial os vaqueiros e os jangadeiros. Mais detalhes do evento serão divulgados em breve.
“Nós pegamos a ideia do trabalhador como tema da obra dele e vamos expandir para a ideia do trabalhador representado na arte, bem como sobre o artista como trabalhador. Também pensaremos na parte moderna e como o modernismo acabou excluindo os artistas que viviam fora do eixo Rio-São Paulo, considerados sempre modernos tardios, muitas vezes artistas populares que foram marginalizados dentro de uma historiografia”, salienta.
Desta feita, a ideia é debater sobre a modernidade tardia e periférica e depois discutir a respeito dos trabalhos desta edição do Salão, sobretudo em como os artistas participantes adaptaram suas práticas diante do período pandêmico. Uma junção de termos e ideias como meio de exaltar, de modo frontal e contínuo, a arte, as pessoas, os fazeres.
Serviço
72º Salão de Abril
Abertura nesta quinta-feira (29), às 16h, em evento fechado ao público.
bras disponíveis para visitação do dia 3 de agosto a 16 de setembro, no Centro Cultural Casa do Barão de Camocim (Rua General Sampaio, 1632, Centro).
De terça a sexta-feira, das 10h às 17h, e no sábado, das 9h às 16h.
Entrada gratuita, respeitando a capacidade máxima do equipamento e as regras de higiene e distanciamento determinadas por decreto municipal.
Mais informações no site do evento