‘Por que dormi?’, lamenta brasileira que monitora grupo em rede social para resgatar sobreviventes

Voluntários passam 24 horas dando suporte aos que pedem ajuda. Rede de solidariedade vem sendo ampliada, graças às redes sociais, ajudando também estrangeiros não-brancos em zona de conflito que sofrem com discriminação

Lorena Barros, 37, ainda lamenta não ter visto a mensagem de uma brasileira, que havia fugido para a Croácia, pedindo ajuda: “por que eu dormi? Eu deveria ter ficado acordada”. Desde o início da Guerra na Ucrânia, a terapeuta holística apenas cochila. Por vezes, o sono não dura nem uma hora. 

A brasileira é uma das administradoras da ‘Frente BrazUcra’, grupo idealizado pela advogada Clara Magalhães. O projeto iniciou quando Clara ofereceu uma acomodação em sua casa, em Leipzig, na Alemanha, para receber brasileiros que conseguissem sair da zona de guerra. O projeto tomou grandes proporções, o que necessitou do auxílio de outras pessoas. Lorena, que mora atualmente em Brighton, na Inglaterra, resolveu monitorar, ainda de forma orgânica, as redes sociais, identificando as necessidades dos que pediam ajuda. 

Após divisão de tarefas, a voluntária ficou na parte de gerenciamento, além de buscar estratégias para captação de refugiados. As análises vão desde a rotas de saída mais seguras ao envio de transportes até à fronteira. “Nesses dias, a gente está só com dois carros”, fala. Como é fluente em inglês, realiza também traduções para quem não consegue se comunicar com as autoridades locais. 

O grupo não atende demandas apenas de brasileiros. Nos últimos dias, refugiados estrangeiros também entraram em contato com a ‘Frente BrazUcra’ buscando ajuda humanitária. “São colombianos, ucranianos, croatas, nigerianos que chegam a todo instante, por estarem sem auxílio das embaixadas”, conta.

A rede de solidariedade, quando não consegue efetivar o resgate, auxilia com informações que, neste cenário, salvam vidas também.

“A gente diz onde vai sair o ônibus, onde tem o trem mais próximo. Às vezes é só um uma palavra, né? A gente leva esperança”
Lorena Barros
brasileira voluntária

O trabalho se estende aos três turnos. Durante as 24 horas diárias, voluntários se dedicam a alguma tarefa ou missão no ‘exército do bem’, como carinhosamente apelidaram. A informação chega, é filtrada e checada para saber a veracidade. Após constatar que não se trata de fake news, o grupo entra em contato com o sobrevivente.

Na primeira conversa, a equipe anota o endereço de onde a pessoa está no momento e alguns outros dados. Depois de coletar informações, é montada uma programação para o acompanhamento da fuga de território ucraniano, antes da acomodação para quem não tem onde ficar.

“A gente tem que ficar vinte e quatro horas ligado com o pessoal do operacional, o pessoal que está em terra dirigindo e os que estão saindo da Ucrânia. A gente pede para eles descansarem, para dormirem um pouco, porque precisam estar bem também para poder continuar ajudando os outros”, expõe.

66 resgatados
Até o momento, 66 pessoas foram resgatadas pelos voluntários da ‘Frente BrazUcra’, sendo 26 brasileiros.

Segundo o grupo, a ação ficou reconhecida internamente, recebendo escolta policial e liberação dos militares para cruzar a fronteira sem filas.  

Trabalho conjunto: de tradução ao resgate

Em meio ao caos daquela quinta feira, 24 de fevereiro, quando a Rússia iniciou o ataque contra Ucrânia, após ver as imagens do bombardeio na televisão romena, Davi Carneiro, 37, entrou em um grupo, no Facebook, o “Brasileiros na Ucrânia", para ver se algum conterrâneo gostaria de fugir para a Romênia e como poderia ajudar nesse processo. 

Davi é um dos administradores do “Brasileiros na Romênia”. Sabendo que uma grande parcela de brasileiros iria para Bucareste, juntou-se com outros voluntários do país vizinho e iniciou um novo grupo, já no Telegram, o “Apoio Brazuca Romênia-Ucrânia”, no mesmo dia. “Como as solicitações começaram a aumentar nos últimos dias, mobilizei o máximo de brasileiros para ajudar. Criamos um grupo no Telegram para facilitar a comunicação”. São 54 membros, que se disponibilizaram a ajudar e receber outros brasileiros e estrangeiros que precisem.      

Na Romênia, os brasileiros tentam ajudar como podem, com traduções, informações, abrigo. Na primeira noite, chegou uma família com sete pessoas sem ter onde ficar na capital romena. Davi não pôde recebê-los, por testar positivo para Covid-19.  “Ainda estou me recuperando. Mesmo assim conseguimos, através do grupo, uma pessoa que disponibilizou estadia para aquela família”, diz.

Marcos Badarau precisou atender o telefone algumas vezes durante a entrevista ao Diário do Nordeste naquela manhã de quinta-feira, 3. Era Sidney Junior, desesperado, pedindo ajuda para sair de Dnipropetrovsk, uma das cidades que viraram zona de guerra na Ucrânia.

Desde 27 de fevereiro, o estudante de medicina é acompanhado pelo IDRSS (sem tradução), uma organização não-governamental que está dando suporte aos cidadãos brasileiros na Ucrânia e aos que estão indo para a Romênia, numa tentativa de conseguir asilo político em algum outro país da Europa. As opções são Romênia e Bulgária. No domingo, 6, Sidney chegou a Bucareste. 

A organização está utilizando grupos nas redes sociais para oferecer ajuda humanitária. Nas publicações, são oferecidos serviços gratuitos de atendimento psicológico, suporte financeiro e informação. Na abordagem, na maioria das vezes por telefone, são colhidos detalhes da situação para que seja realizada a ação necessária. “Se não tem transporte, a gente arranja. A gente consegue tradutor ou mesmo faz as traduções”, explica.

Para os procedimentos, Marcos pede o nome completo, um documento do país de origem, sendo, de preferência, o passaporte, além do número de telefone para um contato de emergência. Na Ucrânia, o IDRSS auxilia no suporte e asilo. Assim como a ‘Frente BrazUcra’, estão chegando pedidos de refugiados de outras representações, principalmente de pessoas latino-americanas.

“A gente não tem um determinado limite de ajuda. No entanto, nosso acesso é um pouco limitado porque a gente está na Romênia, atuando principalmente na fronteira”.

Racialização na empatia

O direito humanitário estabelece que é dever das partes em conflito assegurar que os ataques não atinjam civis, pelo chamado princípio da distinção, buscando distinguir objetivos civis - que devem ser protegidos - de objetivos militares.

Para Thiago Amparo, professor e coordenador do Núcleo de Justiça Racial e Direito da Fundação Getúlio Vargas (FGV), o direito internacional humanitário também dá proteção para que organizações humanitárias possam trabalhar na região do conflito, atendendo a feridos, refugiados e outras populações vulneráveis.

"O direito internacional garante que pessoas fugindo da guerra, refugiados, possam buscar asilo, sendo proibida a discriminação; portanto, a Ucrânia e países receptores como Polônia e outros devem facilitar para que refugiados possam ser alocados e protegidos fora das zonas de guerra, sem discriminação", disse Thiago Amparo.

Entretanto, desde o início da guerra, refugiados não-brancos enfrentam ainda mais dificuldades para conseguir sair da Ucrânia. Amparo explica que há uma racialização na empatia.

“Quando refugiados não-brancos vindo da (europeia) Ucrânia não são permitidos a embarcar num trem, vemos que o status de igual cidadão europeu e empatia de seus pares são racializados. Vemos que as fronteiras são, sim, raciais”. 
Thiago Amparo
professor da Fundação Getúlio Vargas

Até o último dia 3, mais de 500 estudantes estrangeiros encontravam-se encurralados sem poder sair da Ucrânia, sendo a maioria africanos. A União Africana divulgou uma nota de repúdio condenando publicamente o tratamento diferenciado. “Relatos de que africanos são selecionados para tratamento dissimilar inaceitável são chocantemente racistas e uma violação da lei internacional”.

A discriminação também foi sentida pelo jogador de futsal Jonatan Bruno, 30, que ouviu gritos xenofóbicos ao tentar utilizar um dos trens que saia de uma cidade ucraniana atingida pela guerra: “pessoas estrangeiras não vão entrar”. Na ocasião, o atleta foi barrado por uma das funcionárias e não conseguiu realizar a fuga.