Assim que começou a pandemia de Covid-19, os órgãos de Justiça se movimentaram, no Ceará, para adotar medidas que diminuíssem a superlotação dos presídios e, consequentemente, o risco de perpetuar o vírus. Uma delas foi o aumento do uso do monitoramento por tornozeleira eletrônica. Entretanto, entre os beneficiados, estão chefes de uma facção criminosa, que romperam a tornozeleira poucos dias depois da instalação.
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Conforme dados do Tribunal de Justiça do Ceará (TJCE), o número de tornozeleiras eletrônicas saltou 27,6% desde o início da pandemia. Em março deste ano, o Estado tinha 5.937 pessoas monitoradas pelo uso do equipamento. No início de novembro, já eram 7.580 pessoas.
Dayvison Maia Gadelha, de 31 anos, foi beneficiado com a prisão domiciliar, com uso da tornozeleira eletrônica, em abril do ano corrente. Utilizado como "mula" do tráfico internacional de drogas, preso em 2018 e condenado a 6 anos e um mês de prisão, o caminhoneiro está feliz por ter tido a oportunidade de sair do presídio e, agora, sonha em progredir para o regime aberto, para poder sair de casa e voltar a trabalhar.
Mas nem todos os apenados respeitam o monitoramento eletrônico. Lemoel da Silva Santos, apontado pela Polícia como liderança da facção criminosa Comando Vermelho (CV) no bairro Padre Andrade, em Fortaleza, e condenado a seis anos de prisão, progrediu para o regime semiaberto, com prisão domiciliar, em 17 de março deste ano, e rompeu a tornozeleira no dia 16 de julho último.
Segundo o TJCE, Lemoel tinha direito a progredir para o regime semiaberto desde 17 de janeiro de 2019 e, após pedido da defesa, o Ministério Público do Ceará (MPCE) e a Justiça foram favoráveis. Ele responde a processos por organização criminosa, roubo, crimes do Sistema Nacional de Armas, receptação e homicídio. E foi preso em abril de 2017 por suspeita de ameaçar o então secretário da Segurança Pública e Defesa Social (SSPDS), André Costa, através da rede social Facebook.
Já Fernando Lopes Barros, conhecido como "Bombado" e considerado um conselheiro do Comando Vermelho no Ceará, rompeu a tornozeleira eletrônica no dia 12 de outubro deste ano, apenas seis dias depois de conquistar a progressão de regime. O Tribunal de Justiça do Ceará detalha que "Bombado" foi condenado a uma pena total de 46 anos e 6 meses de prisão, dos quais cumpriu 11 anos.
Após parecer favorável do MPCE, ele progrediu para o regime semiaberto em agosto de 2018. Mas em abril de 2019, com uma nova condenação, ele voltou ao regime fechado. A defesa argumentou que ele demonstrava disciplina e obediência no cárcere e o exame criminológico teve resultado positivo, motivos pelos quais o líder do CV voltou ao regime semiaberto neste ano, com aprovação do MP e do juiz do caso. "Bombado" responde a processos por tráfico de drogas, roubo a banco e receptação.
Rompimentos
A Secretaria da Administração Penitenciária do Ceará (SAP) informa que, apesar do aumento da concessão de tornozeleiras eletrônicas neste ano, a taxa de violação do equipamento no Ceará é de 19%, bem menor que a média nacional, que é de 35%. Neste dado, são considerados tanto as situações de tornozeleira rompida como descarregada. A Pasta afirma, em nota, que "mantém equipes de policiais penais diuturnamente no trabalho preventivo de rotas e recapturas de internos foragidos. Tudo realizado de forma integrada com as forças de segurança do Estado".
Conforme a SAP, o aumento da aplicação da tecnologia, nos últimos anos, tem como uma das causas o trabalho realizado pelo núcleo jurídico da Pasta junto da Defensoria Pública do Ceará, que, desde janeiro de 2019, realizaram mais de 32 mil análises processuais dos internos. "Além disso, a Secretaria efetivou 33 mil escoltas e mais de 8 mil videoconferências judiciais. O trabalho, junto ao Poder Judiciário, garantiu celeridade, profissionalismo e acesso à justiça para as pessoas privadas de liberdade", acrescenta.
O advogado criminalista e professor da Universidade de Fortaleza (Unifor) e da Universidade Federal do Ceará (UFC), Nestor Santiago, analisa que "a eficácia do monitoramento eletrônico depende muito da forma como é feito. Se são aparelhos de última geração, se existe realmente uma fiscalização. Porque o rompimento da tornozeleira eletrônica, obviamente, leva à necessidade de imposição de outra medida cautelar, que normalmente é a prisão. Mas, nem sempre, isso é cumprido de forma eficiente".
Aplicação
O aumento da aplicação da tornozeleira eletrônica causou reações distintas entre atores da Justiça. O coordenador do Centro de Apoio Operacional Criminal (Caocrim), do Ministério Público do Ceará, promotor de Justiça Breno Rangel, afirma que "em razão da situação excepcional da pandemia, o número de pedidos de liberdade aumentaram bastante, havendo liberação por critérios não antes avaliados, como doenças do grupo de risco, idade, o que, por consequência, levou também ao aumento da utilização das tornozeleiras eletrônicas".
Questionado se houve um "excesso" na aplicação da medida, diante dos casos de chefes de facção que progrediram de regime e romperam o equipamento, Rangel diz que é "difícil generalizar" e que "embora responda por vários homicídios, existe a possibilidade, conforme a lei brasileira, de progressão de regime, do fechado para o semiaberto, diante do preenchimento de alguns requisitos, sendo, nesse caso, o monitoramento eletrônico um resguardo e não um benefício".
"A posição do Ministério Público foi de avaliar caso a caso, sem generalizar por grupos, analisando em conjunto todos os elementos, como condição de saúde, periculosidade, idade, dentre outros", garante o promotor de Justiça. Demandados, Defensoria Pública do Ceará e Tribunal de Justiça do Ceará não se posicionaram sobre o assunto.
O advogado Leandro Vasques foi um dos primeiros defensores do uso de tornozeleiras eletrônicas no Ceará, quando presidiu o Conselho Penitenciário do Ceará (Copen), em 2009. Segundo ele, a medida é importante para diminuir a superlotação das unidades penitenciárias e os gastos do Estado com os presos.
Vasques acredita que o Poder Judiciário tem sido "prudente" na aplicação do equipamento e respeitado a recomendação do Conselho Nacional de Justiça (CNJ) de converter a prisão preventiva em prisão domiciliar, em casos de grupos de risco para a Covid-19. "É preciso destacar que, mesmo fora do cenário de pandemia, o monitoramento eletrônico deve substituir a prisão preventiva em casos de criminosos não habituais, que não praticaram crimes violentos", pontua.
Já o advogado Kaio Castro acredita que não houve um excesso na aplicação de tornozeleiras, pelo contrário. "É uma medida adequada e proporcional diante da pandemia. Penso que o Poder Judiciário poderia ser mais flexível, principalmente nesse período. A gente percebeu um rigor excessivo quanto à aplicação dessas medidas. As últimas reformas do Código de Processo Penal reforçam o que o legislador buscou, institutos despenalizadores, tratando a prisão como exceção, última 'ratio'", argumenta.