Relatório aponta que presos estariam sofrendo tortura no Ceará

Mecanismo Nacional de Prevenção e Combate à Tortura identifica maus-tratos a detentos, abuso da força e problemas estruturais no sistema penitenciário; Secretaria de Administração Penitenciária nega ilegalidades

As denúncias de práticas de tortura no Sistema Penitenciário cearense ganham cada vez mais força. Desta vez, o Mecanismo Nacional de Prevenção e Combate à Tortura (MNPCT) visitou três presídios localizados na Região Metropolitana de Fortaleza (RMF) e encontrou indícios de maus-tratos, castigos coletivos, abuso da força e problemas estruturais que afetam a saúde e a dignidade dos detentos.

Peritos do Mecanismo estiveram no Ceará entre 25 de fevereiro e 1º de março deste ano, semanas depois da maior série de ataques criminosos da história do Estado, que tumultuou as ruas e reverberou nos presídios. O resultado das visitas foi publicado em um Relatório de Missão, na última sexta-feira (5).

Como as ordens para os ataques partiram de dentro das unidades carcerárias, a nova Secretaria da Administração Penitenciária (SAP), comandada pelo titular Luís Mauro Albuquerque, decidiu implantar um regime mais rigoroso. Familiares dos internos começaram a denunciar os excessos, mas foram desmentidos pelo Estado e outras instituições, como o Ministério Público do Ceará (MPCE) e a Ordem dos Advogados do Brasil - Secção Ceará (OAB-CE).

O Diário do Nordeste publicou, no último dia 27 de março, com exclusividade, reportagem acerca de outra denúncia de tortura que tem como vítimas justamente 32 presos, que foram isolados na CPPL III. Laudos médicos elaborados pela Perícia Forense do Ceará (Pefoce) indicam lesões na cabeça, mãos e pernas, por objeto contundente em alguns detentos do grupo

Oficialização

O Relatório do MNPCT oficializou as denúncias de tortura, pontuou problemas estruturais, criticou a "ausência de um protocolo de uso da força que normatize as condições e os critérios para utilização de equipamentos de segurança e para a aplicação dos 'procedimentos'" e a "completa falta de transparência" no Sistema Penitenciário cearense.

A presidente da Comissão de Direitos Humanos (CDH) da OAB-CE, advogada Virgínia Porto, afirma que vê a conclusão do documento com "muita preocupação" e critica a atuação da Força Tarefa de Intervenção Penitenciária (FTIP), acionada para vir ao Ceará reforçar a segurança dos presídios durante a onda de ataques criminosos. "Foi comprovada, pela visita dos peritos do Mecanismo, uma série de procedimentos que se configura como violações aos direitos humanos. O Relatório é muito completo, vai desde exames físicos a aspectos psicológicos, alimentares e estruturais. Os peritos têm essa expertise, são balizados para essa vistoria", analisa.

Presídios

O Mecanismo inspecionou o Centro de Detenção Provisória (CDP) e o Centro de Triagem e Observação Criminológica (CTOC), em Aquiraz; e a Casa de Privação Provisória de Liberdade Professor Jucá Neto (CPPL III), em Itaitinga, unidades voltadas para presos provisórios que estão superlotadas.

O excedente populacional do CDP foi um dos pontos que chamaram atenção dos peritos. "A superlotação faz com que, em muitas situações, alguns presos fiquem em pé enquanto outros se deitam ou ainda dormem na ala reservada ao sanitário", aponta o relatório. Na Unidade, o MNPCT também identificou condições que afrontam o direito humano à alimentação adequada e à saúde.

No CTOC, o Mecanismo encontrou deficiências nos serviços de segurança e saúde. Um idoso foi encontrado em estado terminal de vida, sendo cuidado por outro interno e sem medicação adequada, o que o órgão chamou de "exemplo simbólico do tratamento cruel, desumano e degradante oferecido no sistema prisional do Estado". "Durante a inspeção, como nas outras Unidades, o quadro de doenças infectocontagiosas, infecções como tuberculose e dermatites eram semelhantes. Pessoas infectadas, sem tratamento e em condições desumanas que só agravavam a situação de saúde", conclui.

Outro ponto destacado no relatório é relacionado a forma como as centenas de transferências feitas pela Secretaria da Administração Penitenciária (SAP) aconteceram. Conforme o documento, as cadeias públicas do interior foram fechadas sem planejamento, aumentando a superlotação que já existia nas grandes unidades da Região Metropolitana de Fortaleza.

Violência

Já na CPPL III, o órgão fiscalizador encontrou uma forte atuação da FTIP, que se sobrepunha à administração estadual. Para o Mecanismo, existe a aplicação de "castigos coletivos" e "torturas generalizadas" no presídio em questão. "Nitidamente, a violência cometida de golpear os dedos com tonfas, chegando muitas vezes a quebrar, foi praticada sistematicamente", crava o Relatório do grupo.

A SAP foi questionada sobre as denúncias publicadas pelo Relatório e respondeu, em nota, que "repudia qualquer ato que atente contra a dignidade humana" e que "não foi notificada e nem teve acesso ao documento em questão, o que nos impossibilita comentar as acusações".

"Ressaltamos que as unidades prisionais cearenses recebem constantes visitas de entidades e órgãos como o Ministério Público, a Defensoria Pública e a OAB, sem que nenhuma violação da dignidade humana tenha sido observada. O sistema prisional cearense passa atualmente por uma vasta reestruturação, que inclui a ampliação do atendimento médico aos presos, reforma física e estética em unidades, parceria com a Defensoria Pública para atualizar o processo penal de cada detento, a retirada de internos para regimes fora dos presídios e a criação de projetos de qualificação profissional com o Senai, Senac e o direito ao trabalho em parceria com grandes indústrias locais, reforçando o esforço diário de humanização e melhoria do sistema carcerário do Estado", contesta a Secretaria Penitenciária.