O sistema de cotas raciais e sociais, ferramenta para a promoção da inclusão no ensino superior de grupos historicamente prejudicados, vem sendo alvo de tentativas de fraudes no Ceará. Somente nos últimos 18 meses, 241 denúncias de alunos tentando burlar o sistema foram instauradas nas instituições públicas estaduais e federais de ensino superior do Estado. A maioria (86%) foi registrada na Universidade Federal do Ceará (UFC).
Do total de processos, 35 culminaram na perda de matrículas devido a confirmação de irregularidades. Deste total, 29 (82%) aconteceram a partir de denúncias na UFC. Pelo menos 98 aguardam análise na Instituição. “Os casos de candidatos e alunos que seguem em investigação, com heteroidentificação prevista para depois do retorno às atividades presenciais”, explicou a UFC, em nota.
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Para coibir esse tipo de prática, as instituições públicas de ensino superior no Ceará, em diálogo com o Ministério Público e o Judiciário, passaram a adotar as chamadas “comissões de heteroidentificação” nos processos seletivos.
Fraudes
Em 2012, a Universidade Federal do Ceará aderiu ao sistema nacional de cotas e a ocupação das vagas reservadas para pretos, pardos e indígenas ficou condicionada à entrega de uma autodeclaração, assinada pelo candidato. Contudo, nos últimos anos a Instituição identificou aumento nas denúncias de fraudes.
Visando coibir esta prática, o Ministério Público Federal conseguiu, em 2019, uma decisão judicial que obrigava a UFC a elaborar e implementar um mecanismo de declaração racial de candidatos, substituindo a condição exclusiva da autodeclaração.
Procedimentos na UFC (Fonte: Pró-reitoria de graduação):
- 2014: denúncias genéricas, sem identificação de alunos específicos;
- 2015: três alunos denunciados;
- 2016: duas denúncias;
- 2017: denúncias genéricas, sem identificação de alunos específicos;
- 2018: seis denúncias;
- 2019: 45 denúncias, com 14 estudantes convocados. Ao todo, 13 alunos tiveram a matrícula cancelada após procedimento de heteroidentificação;
- 2020: 164 denúncias. Em fevereiro, foi realizada a primeira verificação, com 20 ingressantes. Houve 16 cancelamentos de matrículas.
Em 2019, a UFC instaurou uma comissão que confronta a autodeclaração dos candidatos em parecer emitido por 15 membros. Os processos são iniciados a partir de denúncias junto à Ouvidoria Geral e podem ocorrer em até três níveis, caso haja divergência na decisão.
“Há apenas uma análise do fenótipo do aluno pela comissão. Caso coincida com a autodeclaração feita no momento do ingresso na universidade, o vínculo é mantido; caso contrário, a matrícula é cancelada”, informou a UFC, em nota.
A implantação surtiu efeito. Entre 2019 e 2020, a UFC recebeu sozinha 209 denúncias (164 só em 2020). Ela lidera o ranking dentre as demais instituições de ensino. No último ano, 13 alunos tiveram a matrícula cancelada após procedimento de heteroidentificação. Já neste ano, antes da paralisação por conta da pandemia, 20 ingressantes passaram pelo processo e 16 tiveram a matrícula cancelada.
Demais instituições
Na Universidade da Integração Internacional da Lusofonia Afro-Brasileira (Unilab), que conta com uma Comissão de Verificação e Validação de Autodeclaração (CVVA) no acesso aos cursos de graduação, foram registradas duas denúncias anônimas para alunos dos cursos de Engenharia de Energias e de Engenharia da Computação.
As duas situações aconteceram entre os anos de 2019 e 2020 e as fraudes, nestes casos, dizem respeito às cotas raciais. “Um dos alunos já foi afastado e o outro processo ainda está transcorrendo”, ressaltou a Unilab, em nota.
Na Universidade Federal do Cariri (UFCA), a Ouvidoria registrou, no último ano, 21 denúncias para o possível uso indevido das cotas raciais no ingresso ao ensino superior. Neste ano, um caso ganhou repercussão após processo instaurado no Ministério Público Federal (MPF), envolvendo três alunos. Além disso, outras duas denúncias foram registradas por meio da ouvidoria.
“Do semestre 2019.2 em diante, todos os candidatos em cotas raciais passaram pela comissão de heteroidentificação como etapa do processo de seleção, diminuindo consideravelmente o número de registros de manifestações na Ouvidoria Geral”, ressaltou a UFCA, em nota.
Criação
A Universidade Estadual do Ceará (Uece) ainda não possui este mecanismo, mas, após quatro casos em investigação, a pró-reitora de graduação da Uece, Mônica Duarte, detalhou que a Instituição viu a necessidade de criar uma Comissão de Heteroidentificação. A Unilab vai auxiliar a Uece. Segundo Duarte, a Comissão deve ser aprovada ainda no segundo semestre deste ano.
A ideia, segundo ela, é deixar o processo mais claro. Mônica acrescenta que a Uece ainda não pode falar em fraudes porque os casos estão sob a análise da assessoria jurídica da Universidade.
O Instituto Federal do Ceará (IFCE), por sua vez, informou que, até o momento, não há registros de estudantes que tenham ingressado em seus cursos de maneira fraudulenta e nem chegado a perder vagas por conta de apresentação de documentação falsa. Apesar disso, o Departamento de Ingressos da Pró-Reitoria de Ensino do IFCE estima que o Controle Acadêmico, instituído em 2019, “já tenha evitado cerca de 15% de matrículas inadequadas”.
Das seis instituições públicas de ensino, a Universidade Regional do Cariri (Urca) foi a única que não respondeu aos questionamentos até o fechamento desta matéria.