Passado em ruínas

Um lugar também morre de precisão. Cococi nasceu na disputa por terra e foi se acabando pela falta de poder e chuva. Secou de gente para entrar no imaginário como cidade fantasma

No chão de terra vermelha, ficou o rastro do rio de sangue indígena derramado ainda no tempo da colonização dos Inhamuns. Dali em diante, a narrativa do povo é de luta e dominação - uma eterna queda de braço entre ricos e pobres sobre a qual nasceu a cidade de Cococi. A desigualdade e a má distribuição de verba pública no lugar de um dono só deram fim ao município, hoje incorporado como distrito de Parambu. Primeiro foi a raiva da falta de poder a levar os proprietários embora. Depois foi o tempo seco, a afastar os agricultores que resistiam em meio à economia inviável. Ficou a cidade fantasma - com seus casarões abandonados a multiplicar lendas no sertão - e duas únicas famílias que permanecem no lugar que morreu, tentando fazer o milagre de tirar legume do chão duro no Semiárido cearense.

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“O pessoal foi tudo embora. Aqui já foi cidade e agora tá assim acabado”, diz Maria Clenilda Lô, 43, apoiando a mão na cadeira de madeira da sala da casa que foi cartório no outro tempo. Ela mora em Cococi desde novinha. As vezes em que se mudou foi para criar a família a três quilômetros dali. A memória de infância é de uma cidade que tinha tudo (muita casa, muita gente) e que, agora, adormece sem nada. “Conheci hotel, conheci loja de confecção, bodega, padaria, telefone... Tudo tinha aqui”, conta. Quando os primeiros foram deixando a cidade, era fim dos anos 1960, uma era que marcou o sertão por ser tempo de boa chuva. Muitos ainda ficaram nas terras dos patrões, mas as grandes secas da década de 1970 foram avisando a hora de partir.

Clenilda tinha apenas um ano na seca de 72, mas sabe da história de tanto ouvir os mais velhos contarem que foi muita gente embora, enfrentando estrada e se sustentando com teco de mel de abelha no mato. Teve quem fosse para não voltar nunca mais. “Tenho até uns tis que foram nessa época da seca pro Goiás e não voltavam mais nunca. Até hoje!”, ela diz. Cococi já virou a década de 1980 com pouca gente, mas as lembranças que Clenilda guarda da infância no parquinho da praça ainda dão conta do povo que ficou. Há um lapso na memória porque migrar virou natural. O corte abrupto leva ao tempo de agora, com apenas seis pessoas povoando as duas casas que ficaram de pé. Outros doze prédios foram se acabando, invadidos por planta, abandono e solidão.

É tão pouca gente que, se for dia de festa em alguma comunidade vizinha, pode ficar difícil conversar com alguém em Cococi que não seja Clenilda. “Não gosto de sair daqui não. Fico só em casa mesmo. Já me acostumei. Mas aqui tá difícil porque não tem água, não tem nada”, ela diz. A falta de chuva hoje, depois de três anos corridos de seca, tem diminuído a chance de trabalhar na terra. A água de beber chega no Cococi por carros-pipa do Piauí e fica guardada na cisterna que abastece mais de cem pessoas de toda a região. Legume a terra quase não dá, e a criação se sustenta quando é de pequeno porte, comendo palma sapecada em fogo. “Meu pai não trabalha mais porque não chove. Pra cavar uma terra dura dessa e não dá nada. O sol tá acabando com todo mundo”, diz Clenilda.

Em Cococi, se vive da aposentadoria e de bolsa do governo que ainda dá para fazer uma feira por mês no Parambu. Se acabar antes do tempo do pau-de-arara levar novamente para cidade, o jeito é pedir um arroz branco emprestado nas comunidades vizinhas. “Aí pronto. Não tem serviço pra ninguém, não tem mais nada, porque as propriedades tão tudo se acabando, os bichos morrendo de sede e de fome. A gente não tem água, não tem pasto, não tem nada”, emenda.

Cococi virou lugar de passagem, deixando medo nos mais impressionados com as histórias que passaram a povoar o imaginário. É morto que deixa túmulo como serpente se arrastando no chão, vulto que se confunde com sombras das ruínas à noite, voz que grita entre galhos. “O povo conta que via coisas. Ouvia voz, via vulto. Luz eu já vi, mas num tive medo não”, conta Clenilda. Ela estava sentada na calçada quando viu uma luz azul sair do chão ao céu e voltar três vezes. “Ninguém viu, só eu. Era bem bonitim, assim, uma coisa cristã”, diz. Na maior parte do ano, Cococi é vazia e misteriosa. Só enche de gente em novembro para a festa de Nossa Senhora da Conceição. A praça ganha barraquinhas, e a igreja conservada pelo padre de Parambu lota de fiéis a pedir graças. Nessa época, Clenilda se preocupa em limpar bem a igreja, mas no fim, dá conta de uma tristeza sem tamanho:“Quando acaba tudo, fica só o buraco. Tem vezes que eu penso em ir embora. Que no dia da festa tem muita gente, mas depois não fica nada. Só o lugar seco”.

Beatriz Jucá
Repórter