Fincada em pleno “Oásis no Sertão”, no berço da Chapada do Araripe, o Crato completa, nesta segunda-feira (21), 257 anos de emancipação política. A data marca o dia em que a povoação do Miranda se elevou à categoria de vila, passando a se chamar Vila Real do Crato, instalada em 21 de junho de 1764, sendo desmembrada de Icó. Depois, se tornou cidade pela Lei Provincial nº 628, de 17 de outubro de 1853.
Com sua rica história, belezas naturais e personalidades marcantes, a “Princesa do Cariri” também é conhecida como “A cidade da Cultura”. Não é para menos. Terra de Raimundo Aniceto, Sérvulo Esmeraldo, Vicente Leite, entre outros, as artes e as manifestações populares são latentes naquele pedaço de chão.
Em homenagem ao aniversário do Município, o Diário do Nordeste apresenta quatro personalidades cratenses que trazem a cidade em sua trajetória de vida.
O Crato de João
Se perguntearem por João Ulisses Filho, provavelmente ninguém reconhecerá pelo nome. Por outro lado, se mencionarmos João do Crato é bem mais fácil de reverberar pelos 133 mil habitantes da cidade. Aos 67 anos, este cantor, ator, produtor e ativista cultural se tornou uma das referências na cidade.
Apesar de levar o Município em seu nome, João nasceu Aracatiaçu, distrito de Sobral, na região Norte do Estado. Como seu pai trabalhava como mestre de obras no Departamento Nacional de Obras Contra as Secas (DNOCS), a família viveu em constante “êxodo”, como define. Porém, com um ano de idade, já estava no Crato, onde passou a maior parte de sua infância e adolescência. “Minha referência sempre foi o Crato. Nesse território em enxerguei as questões culturais e naturais, a floresta, além da agricultura muito presente”, reforça.
Na cidade que o acolheu, se encantava mesmo era pela feira que classifica como “um espetáculo grandioso”. Nestes dias, havia a presença de rabequeiros, violeiros, sanfoneiros e bandas cabaçais. Uma grande efervescência unida com pessoas de várias lugares da região.
Foi ainda menino, que João conheceu Ciça Maria de Araújo, a Ciça do Barro Cru, uma das mais importantes artesãs do Cariri. Na própria feira, ela empunhava seus bonecos de barro em apresentações teatrais que chamavam atenção. “Uma mulher espetacular! Tudo muito rústico e muito natural. Ela aparecia como uma grande manifestação sobrenatural”, lembra o artista.
O contato com a artesã, que simulava as vozes dos próprios personagens, encenando, por exemplo, pequenos casamentos, ou dando vida a animais, foi despertando sua curiosidade para o mundo artístico. “Era tudo muito incrível”. Na mesma feira, conviveu com os irmãos Aniceto, que representam outra tradição ligada à agricultura. “Além da feira ser muito rica, tinha personagens urbanos. Todos estavam presentes no cotidiano da gente. Essas histórias não faziam parte da elite, mas a história do povo”, acredita.
Antes de partir para Fortaleza servir ao Exército, João já fazia parte dos movimentos de juventude ligados à Igreja no seu bairro, o São Miguel. Nesta época, os festivais ganhavam espaço no Centro da cidade. “Aqui era periferia. O Crato sempre foi excludente neste sentido. Quem morava no Pimenta, no Centro, eram as elites e nós não participávamos destes movimentos”, lembra.
Em Fortaleza, já integrado aos movimentos artísticos de juventude da época, integrou a banda Chá de Flor. Nessa loucura que aglomerava “Joãos” de vários lugares, ganhou o sobrenome “do Crato”, que o eternizaria, para diferenciar os xarás artistas. Ao retornar ao Cariri, demorou para ser reconhecido. “Eu cheguei com outra imagem, psicodélico e uma proposta performática que causou impacto muito grande. Tive que enfrentar e foi bom. Muito bom essa peitada, pois, hoje me respeitam”, brinca.
A gente finda tendo amor e dedicação grande e acaba torcendo pela cidade”
Hoje, João enxerga que apesar de “cidade da cultura”, a cultura em si nunca foi prioridade. “Nunca foi visto como algo significativo. Sempre foi vista como algo pontual”, observa. Por outro lado, reconhece que há uma gama de artistas muito fortes, que resistem e fazem as manifestações artísticas acontecerem. “A gente finda tendo amor e dedicação grande e acaba torcendo pela cidade”.
Por outro lado, lamenta que a cidade esteja crescendo desordenadamente. “As pessoas confundem crescimento com desenvolvimento. Desenvolver é ter consciência ecológica e cultural. O cuidado de preservar a cidade e sua memória. Precisamos compreender a localização da nossa cidade é privilegiada, com muitos mananciais e adaptar a essas possibilidades. Não é só satisfazer a economia”, compartilha.
Brincar como arte
Uma das 14 filhas do casal Maria e Luiz Galdino, a mestra da Cultura Zulene Galdino nasceu no distrito de Arajara, em Barbalha, mas “se criou no Crato”, ressalta. Ainda na infância, já estava morando no sítio Belo Horizonte, próximo ao atual bairro Granjeiro. Foi lá que iniciou com uma brincadeira que levaria para o resto de sua vida: as quadrilhas juninas. Em 1975, criou seu primeiro grupo, batizado de Maçã do Amor, que já dura quase quatro décadas.
O incentivo veio do seu pai, que também era brincador de coco. Nessa época, as danças no terreiro iam até o amanhecer. Foi o próprio Luiz que a ensinou a “marcar” quadrilha. A paixão a fez criar outro grupo, dedicado a crianças de até dez anos de idade, chama de Moranguinho da Criança, “campeã 25 vezes”, se orgulha. Com calça e roupa cumprida, o pisado dos passos eram feitos a pé mesmo.
Reconhecida como mestre da Cultura do Ceará em 2006, Zulene preserva outras grandes tradições: a brincadeira de roda e a dança de cintura fina. “Meu lencinho branco, lavandeira tem. Da pontinha roxa, que me deu meu bem. Olha lá lavandeira, onde vai lavar”, canta embalando as crianças. “Na lua clara, todo mundo brincava de roda. Hoje não tem mais. É difícil. Hoje, só querem saber de celular”, desabafa.
Além de brincante, Zulene Galdino, aos 72 anos, é uma testemunha viva das lendas que habitam a zona rural cratense. Aos sete anos, conta ter tido contato com uma caboclinha da mata, semblante similar de uma criança de cabelos negros e a pele morena. Durante o dia, passeavam em meio a vegetação comendo frutas. Foi com ela que aprendeu a rezar e passou adiante esse ofício. “Comprava até cigarro para ela. Quando esquecia, ela ia assoviar na janela do meu quarto”, garante a brincante.
De Luiz Galdino, também herdou a lapinha e o maneiro-pau, que costuma apresentar em praças cheias. Por isso, seus locais preferidos no Crato são a Praça da Sé e o largo da antiga RFFSA. “Eu gosto de estar com muita gente. Onde ajuntar gente, eu gosto. Eu gosto de alegria, animação e história”, define Zulene.
A luta nunca para
Natural do sítio Malhada, Expedido Guedes da Silva teve um destino comum para a maioria dos que nascem na zona rural: a lida com a roça. Porém, ao contrário da convencional agricultura que se desenhava, principalmente a partir da década de 1980, se tornou uma das referências na difusão da produção orgânica, livre de agrotóxicos, em Crato. Uma luta que trava ainda hoje, aos 70 anos.
Seus pais Maria dos Santos Corrêa e Antônio Guedes do Santos tiveram 16 filhos — quatro faleceram ainda na infância. Sempre criado na agricultura, o trabalho no campo começou cedo, com seis anos de idade, ajudando seu progenitor a plantar e colher feijão, milho, fava, arroz e algodão, abundantes nas margens do rio Carás.
Com 13 anos, Expedito mudou-se para a comunidade do Engenho da Serra, onde começou a se organizar no movimento de juventude. A principal pauta era a valorização da agricultura, que já perdia muitas pessoas para a migração urbana. Outras importantes bandeiras eram as lutas por direitos como educação e saúde, representadas pela expansão de escolas e postos de saúde na zona rural.
A militância o fez chegar à presidência do Sindicato dos Trabalhadores e Trabalhadoras Rurais de Crato, onde conseguiu quitar importantes dívidas e ampliar o número de associados. O mandato durou de 1985 à 1991. Pelo direito ao chão de plantar, pauta que sentiu na pele já que seus pais trabalhavam em locais “arrendados”, foi um dos criadores do primeiro “Grito da Terra” do Cariri, em 1995. “Fizemos desapropriação de latifúndios, participamos da criação do Pronaf e outros programas, audiência com Ministério, ocupação de ruas”, lembra o agricultor.
Porém, sua grande bandeira levantaria na década seguinte, com a ampliação das discussões da sustentabilidade na agricultura, como a diminuição do desmatamento, das queimadas e do uso de agrotóxicos. A partir disso, fundou o Sindicato dos Trabalhadores Orgânicos e Ecológicos do Cariri, que completa 14 anos neste mês de julho. A organização conta com 250 associados.
Nele, além da organização dos trabalhadores rurais, Expedito coloca como pauta a valorização da semente crioula como “uma extensão do convívio com o Semiárido”. “Essa semente vem dos nossos pais, nossos avós, que guardavam para plantar no ‘inverno’ e se tornavam mais resistentes”, pontua. Mesmo com a idade, ainda batalha por uma melhor convivência entre o campo e a cidade e contra o “crescimento desenfreado”. “Precisamos recuperar as terras degradadas, nossos rios e nossa agricultura".
O verso
Pelas mãos de dona Ceicinha, parteira do bairro Seminário, a cordelista Josenir Lacerda veio ao mundo. Aos três anos, mudou-se para a rua Rui Barbosa, na beira do rio Granjeiro. O contato com a água se transformava em brincadeiras tarde à dentro. “A gente assistia as enchentes e se surpreendia quando chovia nas cabeceiras e a água descia parecendo uma grande parede”, conta.
A paixão pelo cordel começou com a incumbência de ler para sua avó, apaixonada por esse tipo de literatura e que possuía coleções de folhetos em casa. “Não chamava nem cordel, era ‘verso’ ou ‘romance’”, recorda Josenir. Seu pai também era amante dos versos e foram com eles que aprendeu a juntar as primeiras sílabas.
Para superar sua timidez, Josenir Lacerda começou a escrever o que considera ser “versos livres”. Isso, aos 12 anos de idade. Apesar da presença forte de métrica e rima, não eram exatamente como as regras do cordel exigem.
Em 1991, Elói Teles de Morais, percebendo que na década de 1980 a literatura de cordel estava perdendo a força, convidou vários cordelistas, dentre eles, Josenir, e fundou a Academia de Cordelistas do Crato. “Isso dava até uma força para cobrar da gente como um compromisso maior”, acredita. Esse movimento foi um ressurgimento dos folhetos no Cariri como um todo.
O amor pela “causa”, como ela mesma considera o cordel, é grande. A cratense, de memória, contabiliza 140 publicações, somando parcerias e coletâneas, que considera como “filhos”. Apesar de garantir que gosta igualmente de todos, destaca “O Linguajar Cearense” como aquele mais jeitoso, danado e que ganhou o mundo. Hoje, está presente até em livros didáticos. Numa brincadeira com o vocabulário local, escreve em trecho:
“Quem briga bota boneco
Sem valor é fulerage
Copo pequeno é caneco
Estrada boa é rodage
O tristonho é capiongo
Galo ou inchaço é mondrongo
E a ralé é catrevage”
O Crato, claro, sempre foi uma grande inspiração. “É encantador. É a ‘capital da Cultura’. Foi e sempre será. A raiz cultural é muito forte”, acredita a cordelista. O vínculo com sua cidade natal vem misturado de um respeito e carinho como se tem por um ancestral, opina Josenir. Para ela, o “espírito provinciano”, mesmo com a modernidade, mantém o encanto. “O pé de serra, a Chapada. Ser abençoada por essa magia é uma das coisas que mais me gratifica”, completa.