A sensação de abandono de ferrovias no interior do Ceará está causando especulação quanto ao destino da faixa de domínio, como são denominadas as áreas de segurança que abrangem os dois lados da malha ferroviária. Gradualmente, os trilhos vão sendo descaracterizados, seja pela ação do tempo ou do homem. Diante do fim das operações dos trens, aos poucos alguns moradores têm se apropriado dessas áreas de forma irregular. O interesse advém do tamanho desta área. Para cada lado do trilho, o Governo Federal é o detentor legal de 22,5 metros. O amplo espaço quadrado se apresenta, na visão dos invasores, suficiente para construções de residências e estabelecimentos comerciais.
Na linha denominada "Tronco Sul", com extensão de 550 km de Fortaleza até a estação de Arrojado, em Lavras da Mangabeira, e mais 123 km até a cidade de Crato, a irregularidade tem se apresentado mais frequente. De acordo com a Ferrovia Transnordestina Logística S.A. (FTL), responsável pela via férrea, os atuais trilhos que cruzam quase dez municípios, até chegar ao Cariri, estão em desuso. No entanto, com projeção de ser reativado com a implementação da nova linha férrea pela Transnordestina. O problema é que, diante dos anos de inércia, parte destes 673 km estão sendo apropriados de forma ilegal. Ao perceberem o desaparecimento dos trens, moradores de algumas dessas cidades, principalmente de Quixadá, passaram a invadir a faixa.
Alguns alegam necessidade por conta do déficit habitacional. Quem precisa de moradia se arrisca. "Agora, a gente não se preocupa mais com o apito do trem, mas com a sirene da polícia. Vez por outra aparece alguém para mandar derrubar tudo. Pode ser errado, mas para quem não tem onde morar, essa é a opção", comenta a desempregada Maria Aparecida, mãe de cinco crianças e que ergueu, há um ano, sua casa por sobre uma área de domínio federal.
Fora da lei
A justificativa da quixadaense pode ser relacionada a um dado exposto por uma pesquisa realizada pelo Ministério da Cidade. Conforme o estudo, o Ceará vai precisar de quase um milhão de novas moradias nas próximas duas décadas. Contudo, para o especialista em habitação, Fábio de Oliveira, o perfil de quem constrói casas em áreas irregulares nem sempre condiz com aqueles que estão sem moradia. "Muitos se aproveitam para outra finalidade. Isso porque quanto mais próxima do Centro da cidade, mais valiosa é a área. Então muitos veem uma oportunidade de lucrar, fora da lei, com esses imóveis construídos. Só para se ter uma ideia, um metro quadrado pode valer mais de R$ 1 mil nas regiões centrais", explicou.
Ainda conforme Fábio, essas faixas de domínio deveriam ser transformadas em avenidas, vez que já são áreas públicas pertencentes à União. "Se os trens não correm mais, essas vias, que chegam a cortar as cidades de uma ponta a outra, podem ser muito úteis para o escoamento do tráfego rodoviário. A faixa pode ser cedida às prefeituras, dessa forma evitando a apropriação ilegal e o abandono, como se vê em Quixadá", acrescentou.
Alternativas
Esse modelo de cessão exposto por Fábio já está sendo utilizado em Iguatu, maior cidade do Centro Sul do Estado. O poder público municipal se apropriou dos espaços abertos pela ferrovia na área urbana, mas de forma legal. Um contrato, de 20 anos, permite a utilização. Através dele, foram abertas ruas e as passagens de nível receberam pavimentação de asfalto. Outra alternativa é tombar esses locais que, em certos casos, tem valor histórico e arquitetônico. Em Senador Pompeu, 10 km de via férrea estão conservados e protegidos como patrimônio histórico nacional, tombado pelo Iphan.
Atuação
Gestores municipais das cidades com áreas de domínio invadidas informam não ser da responsabilidade deles a preservação da via férrea, como também ações de desocupação. No caso de Quixadá, a Prefeitura ressaltou se esforçar para manter o corredor ferroviário em conformidade com a lei.
Responsabilidade
O contrato de concessão e arrendamento com a União estabelece à FTL a obrigação de adotar medidas para evitar o uso da faixa de domínio, um espaço que, por motivos de segurança, deve estar livre e não pode ser ocupado em nenhuma hipótese. A reportagem questionou a Agência Nacional de Transportes Terrestres (ANTT), responsável pela regulação das atividades de exploração da infraestrutura ferroviária e rodoviária federal, sobre ações estão sendo adotadas para evitar as ocupações irregulares, e sobre o destino da linha desativada. Até a conclusão desta edição, não houve resposta da autarquia.
Extensão
De acordo com a FTL, atualmente, no Ceará, está em operação comercial apenas o trecho de 502 km, do Porto do Mucuripe até a divisa com o Piauí. Nela são transportadas cargas por 1,2 mil km entre os portos de Itaqui, em São Luís (MA), Pecém em São Gonçalo do Amarante (CE) e Mucuripe, em Fortaleza. A Ferrovia Transnordestina atua no transporte de cargas desde a privatização da Malha Nordeste ocorrida em 1998, época em que teve início o período de concessão. Transporta, entre outros, derivados de petróleo e minério de ferro.