Longe dos holofotes da Marquês de Sapucaí, no Rio de Janeiro, o Sertão do Ceará preserva tradicionais agremiações. Em Várzea Alegre, na região Centro-Sul, a Escola de Samba Unidos do Roçado de Dentro (Esurd), criada por agricultores, e em Barbalha, no Cariri, a Unidos do Morro, são dois exemplos que perpetuam a alegria através do samba por mais de meio século.
Em comum: a data de fundação - as duas agremiações foram fundadas no ano de 1963 - e a dedicação ao Carnaval. A primeira, foi formada na zona rural, enquanto a segunda representa a periferia da cidade caririense.
A brincadeira em Várzea Alegre começou com três agricultores do Sítio Roçado de Dentro, que tocavam sanfona, zabumba e pandeiro, puxando o "Bloco dos Sujos". Aos poucos, o grupo foi conquistando os moradores, passou por um processo de modernização e atraiu passistas do centro urbano. Depois, inovou ao colocar na avenida carros alegóricos e de som para ecoar o samba-enredo e animar o público. Incorporou adereços e outros elementos das grandes escolas de samba.
A história é rememorada a cada Carnaval com orgulho por descendentes dos fundadores: Pedro de Souza, Mestre Tim, Josimar, Matias de Souza e outros. De bloco passou à Escola de Samba Unidos do Roçado de Dentro que leva o nome da localidade. A bateria, no dia do desfile, percorre quatro quilômetros, da comunidade até a sede da cidade, para encantar a população.
Outras duas escolas também desfilam em dias diferentes. Mas lá não tem competição. É tudo por diversão e tradição. Este ano, a Esurd vai desfilar com 14 alas e 600 integrantes. A maioria das fantasias é preparada pelos participantes em casa e no pavilhão da agremiação.
Hoje a noite (23), a escola leva para a avenida uma homenagem ao médico e ex-prefeito, Pedro Sátiro, de 90 anos, que vai desfilar em carro alegórico. "Tributo a doutor Pedro: Uma história de vida contada em samba", puxada pelo músico Manoel Dias, é o tema central do desfile.
Antônio de Souza, agricultor, um dos sobrinhos do fundador Pedro de Souza, neste domingo, troca a enxada e a roupa de trabalho no campo, por fantasia. É um dos puxadores do samba da Esurd. "Participo por amor, para manter a tradição, essa história bonita da comunidade", ressalta. "A gente incentiva os mais jovens a tocar na bateria", completa.
A paixão pelo Carnaval também foi o principal ingrediente para a criação da Grêmio Recreativo Escola de Samba Unidos do Morro, nascida no bairro do Rosário, um dos maiores berços do samba do Cariri. A agremiação surgiu através de Francisco Pereira de Oliveira, o Fanequim. "Nosso maior ícone do samba, não só para a Unidos do Morro, mas para todas as outras escolas de Barbalha", garante o presidente da escola, o mecânico Nilo Veloso Júnior.
Após desembarcar do Rio de Janeiro em 1961, onde morou na década de 1950, Fanequim notou a segregação da sociedade barbalhense. Vindo de família humilde, acreditou que os mais pobres também tinham direito a se divertir. O único clube da cidade era o Cetama, mas era frequentado apenas pela elite. No ano seguinte, com mais alguns amigos, alugou um prédio e fundou o Clube Maguary, que possuía um bloco homônimo.
A ascensão da brincadeira aconteceu em 1963, quando deu início o projeto da escola de samba. Com 20 ritmistas, um casal de passistas, a Unidos do Morro saiu, pela primeira vez, nas ruas, cantando os sambas da época.
Hoje, com sete títulos do Carnaval barbalhense, a escola possui o maior número de torcedores e cerca de 350 integrantes. Nesta terça-feira (25), com o tema "Pra chegar até aqui", a agremiação homenageará o cantor e músico Fábio Carneirinho.
Dedicação
Os trabalhos no barracão da agremiação começaram em agosto, um mês após apresentarem o samba-enredo de 2020. Máquina de costura, cola, tecido, manequim. Cerca de 15 pessoas, diariamente, se dedicam para deixar tudo pronto para o desfile.
"Chega cedo e não tem hora para sair, principalmente agora, quando está chegando perto", admite Kerlly Gomes, que será destaque da escola. Ela ressalta que a agremiação passou "a ocupar um lugar de integração no bairro". "É praticamente todo mundo dentro da escola", reforça.
O papel das escolas de Barbalha e Várzea Alegre vai além do desfile. As agremiações atuam como instrumento de integração social. Os participantes, que desfilam ou atuam nos bastidores, são de idades variadas. Essa mescla possibilita um horizonte de perpetuação da tradição.
Na Esurd, o percussionista mais jovem é Lucas de Sousa, de apenas seis anos, descendente dos fundadores. "Essa é a mostra da renovação e uma certeza de que a tradição vai ser mantida", observa o maestro da bateria, Caio de Souza.