Da calçada de sua residência, na praia de Barrinha, em Icapuí, o pescador Maurício Sabino, 46, observa o vaivém de veículos. As placas de outras cidades e até de outros estados, sugere que a maioria se trata de turistas. “Isso aqui mudou muito nos últimos anos”, reflete. A mudança a qual o pescador se refere é o aumento no fluxo de pessoas na pacata – e paradisíaca – cidade litorânea, cujo número de habitantes não ultrapassa a marca dos 22 mil, segundo último censo do IBGE, de 2020.
Além dos atrativos naturais, que já são um bom convite à cidade, Icapuí ganhou notoriedade mundial neste ano após o lançamento do clipe da cantora estadunidense Selena Gomez, com a música “Baila Conmigo”, que fora gravado nas praias do Município. Diante do cenário pandêmico, com restrições impostas para circulação de pessoas, o número de turistas entre 2020 e 2021 regrediu, mas a expectativa é de que volte a crescer – assim como vinha sendo experimentado – na pós-pandemia.
Essa tendência de grande demanda turística anima o setor hoteleiro e de serviços, mas acende o alerta para questões ambientais. “É natural, embora não devesse ser visto ou tratado como normal, que pequenos lugares quando passam a receber grande fluxo de pessoas sofram impactos pela falta de estrutura, principalmente quando a gente se refere ao descarte de lixo e agressão ao meio ambiente”, adverte o ambientalista Emanoel Alencar.
Essa “ameaça” foi identificada pela Associação de Pesquisa e Preservação de Ecossistemas Aquáticos (Aquasis) que propôs, ao Município e a outros órgãos ligados a questões ambientais, a criação de um plano estratégico cuja missão é trazer soluções para essa problemática já observada dentro de Icapuí, como na Área de Proteção Ambiental (APA) do Manguezal da Barra Grande.
Planejamento e execução
Em fevereiro, membros da Aquasis, da Universidade Federal do Ceará, da Fundação Brasil Cidadão, do Instituto Municipal de Fiscalização e Licenciamento Ambiental, da Secretária de Turismo e Secretaria de Obras e Infraestrutura de Icapuí se reuniram para darem início ao planejamento e execução do plano estratégico.
A bióloga Gabriela Ramires, coordenadora de Apoio a Políticas Públicas do Projeto Aves Migratórias do Nordeste da Aquasis, ilustra que, além de mapear os locais com maior incidência de descarte irregular de lixo, a reunião abordou estratégias de como reduzir a poluição causada por descarte inadequado, sobretudo na APA.
“O Projeto Aves Migratórias do Nordeste vê que a solução desse problema carece de uma ação articulada entre a sociedade e os entes públicos principalmente no tocante à educação ambiental e dentro disso, na educação sobre as estratégias individuais de consumo e descarte adequado previstos no plano municipal de gerenciamento de resíduos sólidos”, avalia Ramires.
Como solução a curto prazo, Gabriela revela que o programa Petrobras Socioambiental em parceria do Environmental and Climate Change Canada, patrocinará confecção e distribuição de sinalização sensibilizante e coletores seletivos de recicláveis.
Esse engajamento comunitário no intuito de mitigar a degradação ambiental já começa a ser observado na prática. Maurício Sabino é um dos que, preocupado com o crescente fluxo turístico na cidade em que nasceu, optou “em colocar a mão na massa”, como o próprio descreve. Com apoio de outros pescadores e um carpinteiro, ele construiu lixeiras que foram dispostas ao longo da orla. Além disso, o grupo confeccionou coletores de resíduos.
“As lixeiras têm frases para conscientizar as pessoas. Já os depósitos têm três galões, para colocar óleo velho dos barcos, embalagens contaminadas e lixo úmido. É importante receber os turistas, mas sem cuidado, Icapuí não vai durar”, detalha Maurício. Essa estratégia de distribuir lixeiras e coletores está contemplado no plano estratégico e deve receber custeio para ampliação desses pontos.
Manguezais
O plano estratégico visa elaborar ações diretas para proteção do manguezal, pois, atualmente, “ele vem sendo agredido constantemente pelo descarte inadequado desses resíduos”, conforme pontua Gabriela. Um dos pontos mais críticos, conforme a Aquasis, é na localidade do porto.
“Esse atracadouro é utilizado pelos barcos de pesca os quais realizam manutenção periódica e desembarque de pescado e ali nesse local a prefeitura instalou coletores de forma correta e muito responsável. Porém, mesmo após esta instalação os coletores vêm sendo inapropriadamente utilizados ou ignorados”, critica a bióloga.
Há o receio de que esses resíduos sólidos e óleo, extremamente poluentes, atinjam os manguezais, o mar e o Banco dos Cajuais, que é o maior banco de algas e capim-marinho da costa semiárida do Brasil. Caso isso aconteça, “vai impactar diretamente a fauna e a flora que lá persistem em existir”, diz Gabriela. Essa degradação ameaça, também, a renda das várias comunidades pesqueiras tradicionais que terão o “pescado ameaçado”.
Fique por dentro
- O Banco dos Cajuais é responsável por abrigar lagostas em estágio de crescimento, e constitui-se ainda na área de postura de ovos de peixes comerciais. Portanto, é considerado o berçário da vida marinha responsável pelo suporte ao equilíbrio ecológico e pela fonte de renda das comunidades tradicionais locais.
- As cordas de cultivo de algas, também são alocadas no Banco dos Cajuais. Este banco de sedimentos, algas e capim agulha (principal alimento do peixe-boi-marinho, o mamífero marinho mais ameaçado de extinção do Brasil) tem o formato de meia-lua abraçando o manguezal que dá nome à área de proteção ambiental. O cultivo de algas é importante, ainda, para manutenção do Projeto Mulheres de Corpos e Algas, que realiza trabalho sustentável agregando valor às algas e gerando renda para famílias de Icapuí.
Aves migratórias
Gabriela destaca que Icapuí é um dos municípios cearenses mais importantes para a conservação das aves migratórias neárticas no Ceará. "Lá é onde temos dados consolidados de longo prazo sobre permanência constante de grandes bandos durante a maior parte do ano dentro do período migratório".[
O biólogo e coordenador de Monitoramento do Aves Migratórias do Nordeste (PAMN), Onofre Monteiro, explica que ao longo da zona costeira brasileira, às aves limícolas estão associadas a ambientes úmidos em busca de alimentos nas zonas entre marés, especialmente nas praias, em lagunas costeiras e estuários com manguezais.
"Esse grupo de aves possui representantes residentes como também os que apresentam comportamento migratório em massa de bandos de aves deslocando-se dos invernos polares que cobrem seus sítios reprodutivos no Ártico por mais da metade do ano, para locais não reprodutivos de uma forma cíclica e sazonal. A zona costeira do nordeste possui diversas paisagens que propiciam a parada dessas aves em pontos específicos durante a migração", explica.
No Ceará, devido a sua diversidade de habitats costeiros para essas aves, é possível observar entre os meses de agosto a abril, "dezenas de espécies representado por essas aves limícolas, algumas que realizam longas jornadas, podendo ultrapassar os 30 mil km em seus trajetos anuais de ida-e-volta", acrescenta Onofre.
Essa pluralidade de espécie das aves migratórias - bem como qualquer outro animal - pode ser afetado pelo acúmulo de microplásticos proveniente deste descarte inadequado de resíduos, alerta Gabriela Ramires. A falta de controle dessa degradação, ainda segundo a coordenadora da Aquasis, pode inclusive comprometer até a existência futura da espécie.
"Outros poluentes já foram encontrados em cascas dos ovos destas aves do Ártico sendo que estas, as aves limícolas, são o grupo de aves que apresenta o maior declínio dentro de todos os outros grupos de aves do planeta. Dentre elas o maçarico-de-papo-vermelho já diminuiu 80% de sua população nos últimos 30 anos, então qualquer impacto pode ser preocupante em relação a esta e outras espécies ameaçadas de extinção", conclui.