Mistério, preconceito, perseguição e desconfiança são marcas que cercam historicamente a etnia cigana. No Ceará, assim como em outras partes do Brasil e do mundo, não se sabe muito a respeito deles e quantos na verdade são. Essa realidade começa a mudar no Estado com um levantamento inédito que está sendo realizado pela Associação de Preservação da Cultura Cigana do Estado do Ceará (Asprecce), que já identificou comunidades ciganas em pelo menos 48 municípios cearenses.
A história desse povo, que surgiu na Índia entre os anos 500 e 1000 d.C e se espalhou primeiramente pela Europa e depois pelo restante do mundo, é cheia de contradição. Sabe-se que, até pouco tempo, eram nômades, faziam questão de manter-se invisíveis, como forma de fugir da curiosidade e do preconceito que os cerca. Nos últimos 50 anos, iniciaram um processo de sedentarização.
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No Ceará, praticamente todos vivem dessa forma, fixados, embora mantenham uma das suas principais tradições, as viagens para realizar negócios. A comercialização de animais, que vingou com mais intensidade até a metade do século passado, deu vez à venda de produtos importados em feiras ou de porta em porta.
Com o objetivo de conhecer um pouco dessa realidade, a reportagem percorreu alguns municípios para retratar como vivem essas comunidades. Para conseguir esse intento foi preciso muita negociação. Entrevistar um cigano não é tarefa simples. Muitas vezes, isso só foi possível graças à intermediação de suas lideranças e sob algumas condições, como não fotografá-los ou filmá-los, não declinar sua localização.
Em alguns locais, mesmo após atendermos a essas exigências, não foi possível realizar as entrevistas. O medo de que suas declarações fossem mal interpretadas pelas autoridades locais e pela Polícia fez com que retroagissem. Apesar disso, foi possível entrar nesse mundo peculiar dos ciganos, uma minoria étnica mais excluída pela sociedade e pelas políticas públicas do que os indígenas e quilombolas.
Matriarca cigana no Ceará
Uma notável representantes da etnia no Ceará é Maria Cícera Lucina, de 82 anos. Ela viveu grandes aventuras e desventuras. Hoje, é considerada a matriarca cigana do Ceará. Desde a morte do seu esposo, há 15 anos, dedica seu tempo a aconselhar os mais jovens, além de dedicar-se a passar às novas gerações a leitura de mão, uma das tradições mais emblemáticas dos ciganos.
"Nossa vida sempre foi cheia de dificuldades mas também de alegria por poder se deslocar para onde quiséssemos. A gente andava em caravanas. Eram muitas famílias. O Vicente (seu esposo Vicente Gomes Atenório) era um homem correto e respeitado. Por isso a gente recebia acolhida onde chegava. Nós arranchávamos em barracas, casas e acampamentos. Foram décadas de andanças na companhia dos nossos dez filhos ainda pequenos".
O filho mais velho, Édson Rodrigues, conta que essa tradição, que aos poucos foi sendo deixada de lado, acabou por atrapalhar a formação dos jovens. "Eu e meus irmãos nunca conseguimos nos manter na escola. As viagens acabavam prejudicando nossa vida. Por isso, a maioria da nossa raça não tem muito estudo. Ainda bem que isso começou a mudar nos últimos vinte anos. Hoje, já temos ciganos até formados na faculdade. Essa mudança vai ajudar o nosso povo a conquistar seus direitos".
"Ajudo a quem estiver precisando. Muitas mães trazem seus filhos para que eu reze".
Uma das filhas de Édson é Dara Ellen Barbosa Rodrigues, 14 anos, estudante do 9º ano da Escola Municipal de Caucaia Plácido Monteiro Gondim. Dara conta que, aos poucos, o preconceito em torno do seu povo está sendo superado. "Na escola todos sabem que sou cigana. Não escondo a minha origem. Tenho muitas amigas que frequentam a minha casa. Algumas estão aprendendo conosco a dança cigana".