Crato. A seca de 1932 é lembrada, tanto na literatura como na oralidade, como uma das mais perversas que castigou o Nordeste no início do Século XX. Foi esse fenômeno de escassez de água e alimento que impulsionou o crescimento do Caldeirão da Santa Cruz do Deserto, comunidade liderada pelo Beato José Lourenço, que recebeu cerca de 1.700 pessoas. Lá havia fartura, riqueza espiritual e abundância de comida.
A 33Km da sede do Município de Crato, o Caldeirão da Santa Cruz do Deserto fica entre os distritos de Monte Alverne e Dom Quintino. Lá, foi abrigo de centenas de flagelados da seca, devotos do Padre Cícero, que encontraram na comunidade alimentação, trabalho e refúgio espiritual. Havia oficinas fiação, tecelagem, costura, casa de farinha, ferreiro, engenho de cana e marcenaria.
> Local deve ganhar impulso turístico com a integração
"Lá é uma trajetória humana muito rica em valores avançados, que são carentes hoje: respeito, igualdade, uma vida em comunhão, abundância e partilha. É uma utopia realizável", explica o professor da Universidade Regional do Cariri (Urca), Domingos Sávio Cordeiro, que se dedicou a estudar a imagem da comunidade para remanescentes do Caldeirão.
Temendo que a comunidade se tornasse um movimento messiânico, o Governo Federal, em 1937, ordenou que as Forças Armadas e a Polícia Militar do Ceará invadissem o local. Alguns moradores do Caldeirão das Santa Cruz foram mortos e os sobreviventes foram expulsos de suas terras. O beato José Lourenço e seus seguidores fugiram. Até hoje, muitos corpos não foram encontrados e não há nenhum registro oficial do número exato de vítimas.
Polêmica
Alguns pesquisadores não acreditam que houve massacre, apenas a expulsão dos moradores. Faltam evidências arqueológicas e antropológicas. Filhos de remanescentes negam assassinatos. O beato sequer foi preso e saiu de lá entre os moradores, como qualquer outro, sem ser reconhecido. Muitos boatos cercam o Caldeirão da Santa Cruz, antes mesmo da intervenção militar. Dizem que poderia se tornar uma nova Canudos ou o medo do Comunismo impulsionou o ataque do governo.
Hoje, o local é anualmente visitado na Romaria da Santa Cruz do Deserto, que acontece em setembro. Neste ano, foi realizada pela 18ª vez e cerca de duas mil pessoas visitaram o local. Na comunidade do Caldeirão existe a capela de Santo Inácio de Loyola, obra contemporânea aos primeiros moradores de lá. Ao lado, tem um pequeno cemitério pagão. A 300 metros dali, entre pedras, subidas e descidas, está um rio, que, entre as grandes formações rochosas, acumula água durante todo ano. Muitos visitam para tomar banho por lá. Na saída, ainda dá pra ver a estrutura do casarão do Beato José Lourenço. Só restaram algumas pedras da parede.
Na comunidade tem duas casas. A primeira, mais antiga, feita de pedra, só com dois cômodos; a outra, construída pela Prefeitura em 2007, junto com o prédio que seria destinado a um museu vivo. Na segunda casa, habitam os únicos moradores do Caldeirão do Beato José Lourenço, o casal Raimundo Batista, 74, e Maria Januário de Lima, 62. Há 21 anos residem ali.
"Eu tomo conta de um patrimônio do Crato. Sou guia de todo visitante que chega. Aqui era pra ser de outra forma, bem cuidada, com água, cavar um poço profundo, pois é muito visitado", explica o agricultor Raimundo Batista, que nasceu e cresceu em Monte Alverne, mas aceitou o trabalho de roçar as terras do Caldeirão para sustentar a família de 14 filhos. "Juntei os meninos e limpei tudo. Aqui era só mato. Essa calçada ninguém via. Dentro da igreja era um formigueiro", lembra.
Após esse primeiro serviço, recebeu o convite da Prefeitura, em 1996, para morar e trabalhar nas terras que já foram posse do Padre Cícero. Largar a roça arrendada e longe de casa foi uma decisão acertada, na época. Em 2007, recebeu energia elétrica. "Não tem um visitante que venha aqui e saia insatisfeito comigo. Aqui não tinha nada. Nem sombra. Hoje tem manga, acerola, caju. Tudo que plantar dá aqui", explica o agricultor.
Mas Raimundo e Maria não querem continuar por muito tempo no Caldeirão, pois hoje ficam muito longe de hospitais, postos de saúde e outros serviços. No mês passado, a mulher teve problemas de saúde e precisou que ir ao Crato. Eles têm que andar a pé cerca de nove quilômetros para conseguir um transporte para a sede do Município. "O que faz eu morar aqui é não ter onde morar e onde trabalhar", explica Raimundo.
Revitalização
As discussões sobre a revitalização do lugar se impulsionaram na última semana. Na terça-feira (10), foi realizado o Seminário "Caldeirão da Santa Cruz do Deserto: uma construção coletiva", organizado pela Urca. O evento debateu dois pontos principais: os estudos para que aquela área se torne um geossítio do Geopark Araripe e, também, que passe a ser uma Unidade de Conservação gerida pelo Município.
A retomada do Caldeirão da Santa Cruz do Deserto como espaço de turismo, pesquisa e religiosidade é inspirada no próprio beato José Lourenço, que recebia jornalistas, políticos, religiosos e que por lá chegasse.
"Costumo dizer que o milagre da hóstia que aconteceu com a Beata Maria de Araújo é um sinal. E ele se dá no caldeirão. O verdadeiro milagre do pão foi aqui, onde as pessoas ameaçadas pela seca migraram para o Cariri e para o Caldeirão. E foi uma comunidade que provou ser sustentável", explica o padre Vileci Vidal, da Diocese de Crato, que organiza todo ano a Romaria da Santa Cruz do Deserto.
Discussão relevante
"Não é de agora que tentam fazer com que o Caldeirão recupere seu valor histórico e cultural. O que tem faltado muito é algo que dê uma liga das conversas. Discutir o que é prioritário. Assim dá pra saber o que é relevante", afirma o professor Domingos Sávio, que compôs uma das mesas do Seminário que contou com a participação de diversas entidades.
Das discussões, ficou a preocupação em tornar o Caldeirão das Santa Cruz um museu vivo, que se torne um local de turismo científico e ecológico e colocar a comunidade no material didático das escolas estaduais e universidades. "Não existe terra ruim, existe terra abandonada. Até o deserto é fértil", exalta o professor Domingos Sávio.
Gestão municipal
Quatro áreas de unidade de conservação são geridas pelos municípios, no Ceará. Todas na zona costeira. Duas em Camocim, uma em Aracati e uma em Fortaleza.
Fique por dentro
Ampliação dos geossítios deve ser maior
Criado em 2006, o Geopark Araripe está em seis municípios do Cariri e hoje possui nove geossítios. O projeto de desenvolvimento territorial faz parte da Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco) e sua gestão é feita pela Universidade Regional do Cariri (Urca). Os geossítios são pontos para visitação, pesquisa e educação. São eles: Colina do Horto, em Juazeiro do Norte; Cachoeira de Missão Velha e Floresta Petrificada do Cariri, em Missão Velha; Pedra Cariri, Parque dos Pterossauros e Pontal de Santa Cruz, em Santana do Cariri; Batateira, em Crato; Riacho do Meio, em Barbalha; e Ponte de Pedra, em Nova Olinda.
Além do Caldeirão da Santa Cruz, estudos estão sendo desenvolvidos para a criação de mais dois geossítios. Todos em Crato. Um deles é o Levadas de Água, numa trilha entre o Sítio Coqueiro e a Nascente, no Crato, mas levadas de Barbalha e Porteiras também farão parte do roteiro. O outro é o Santa Fé, no distrito homônimo, que possui um sítio arqueológico a 800m de altitude. Lá, foram encontradas gravuras nas rochas que indicam o local como um santuário para rituais dos índios Kariri.