É tempo de partir quando os olhos ensaiam chorar pelo que não veem. A estrada ganha nitidez na peleja do sertanejo com as ausências – primeiro da chuva para segurar legume, depois daqueles que se avexaram para seguir viagem mais cedo, antes que a fraqueza ditasse a lonjura do caminho.
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A decisão de ganhar o mundo vem do bucho vazio, da fome que já não é saciada há meses. E demora o tempo de colocar uma trouxa com a rede nas costas, arrumar alguma bagagem miúda na cangalha do jumento e seguir com a cabeça baixa – acompanhado ou não pela família – em busca de sustento. Arrancado da terra pela falta de comida, cabe ao sertanejo agora a sina de tentar sobreviver com a maior de todas as ausências: a do sertão que extrapola os limites cartográficos para habitá-lo com melancolia.
Luiz Gonzaga de Araújo sacode os pés sobre um dos ferros da cadeira de balanço e deixa que as frases lhe escapem intercaladas por longos olhares que se perdem no chão, tão vazios quanto a paisagem que recorda da seca. Ele cresceu nas proximidades de Santa Luzia, vilarejo de Independência, vendo as pessoas saírem por caminhos que não ofereciam qualquer garantia de retorno. Quem morava perto da serra subia por quilômetros a pé para plantar e colher mandioca. Quem não avistava mais possibilidade de terra para dar legume saía em busca de sustento e trabalho, se empregando em fazenda de gente rica ou em frente de serviço do governo. Contavam apenas com a certeza de que, no sertão, toda casa de família vira rancho.
“A coragem nesse tempo era grande”, diz Luiz Gonzaga. Nas tantas vezes em que viu o Ceará esvaziar, o pensamento dele se afinava ao de quem partia: “Tô muito fraco, acho que não volto mais não”. A sorte de ter família pequena, com apenas um filho, ainda o segurou por algum tempo. Só na seca de 1983 ele precisou deixar seu povo pra ganhar o mundo carregando carro de mão com piçarro para construir açude nas frentes de emergência do governo. “A gente sofria, papocava as mãos com o trabalho. Fomos trabalhar lá perto do Crateús”, conta. De lá, só voltava uma vez por semana para deixar os mantimentos que recebia como pagamento.
A sina de Luiz Gonzaga é a mesma de Antônio Pereira dos Santos. Aos 77 anos, ele segue a vida na comunidade do Trici, em Tauá, com saudade do tempo que tinha inverno pra deixar a vida farta. Há seis anos, o rio do entorno não corre mais. “Eu já não tenho mais fé pra nada”, ele diz. E cruza os pés vestidos de chinelas azuis como quem se fecha. Só volta a se abrir para dar conta de quem é: “É o seguinte, dona, quando eu morrer, o buraco vai ter que ser largo pra me enterrar porque eu não sou fácil, não. Eu sou é positivo”. Forjada na luta com raiz de mucunã e xique-xique nas secas da infância, a fortaleza de Antônio gritou em 1958, quando seguiu rumo a Aiuaba pra trabalhar em construção de açude. O problema foi quando um fiscal reclamou do carrinho de mão cheio demais. Antônio zangou-se e partiu em busca do patrão. “Eu quero que o senhor me arranje um negócio pra eu ir embora. Quero um par de alpargata e uma roupa”. Saiu para se empregar com um homem que conheceu na obra. Só voltou um ano depois, quando a chuva já esverdeava de novo o sertão. Mas o tempo voltou a secar, e Antônio precisou aprender a viver com a ausência dos quatro filhos, levados para São Paulo e Vitória pela seca.
Em outra ponta do sertão dos Inhamuns, Francisco José Vieira apoia os braços na madeira que sustenta o teto baixo de sua casa, em Independência, e lança a vista pela janela. Perto dali, onde pés de mandacaru tomaram o lugar da casa dos pais, ele passou a infância vendo os vizinhos cortarem caminho pra escapar na serra. O pensamento que tentava prever sua vez de partir era cortado pelas palavras da mãe: “Serra não é lugar. No sertão, você escapa, mas na serra não. Lá pra pegar um prato de comida com alguém é difícil. No sertão, em qualquer casa você come”. Até que 1972 chegou avisando que não teria jeito.“Fui pra serra com papai, mamãe e quatro irmãos. Papai sabia que o boiadeiro Teixeira tava lá e ia ajudar. Fomos de jumento. Colocamos a bagagenzinha na cangalha e descemos com a cabeça baixa. Três dias pra chegar lá”, conta. O boiadeiro dava trabalho a dezenas de famílias que chegavam, designadas ao trabalho de arrancar toco e limpar terreno pra quando a chuva chegar. Os meses passavam arrastados, e alegria mesmo só quando caiam as primeiras águas anunciando a hora de voltar. Para o retorno, o tempo era o de plantar a roça do patrão para pagar a ajuda e pegar a trouxa, tomando novamente o rumo de si mesmo.
Beatriz Jucá
Repórter