Prestes a completar 298 anos, Fortaleza nasceu com o posto de centro político do Estado. Não à toa, mesmo antes de ser considerada, de fato, a capital do Ceará, as disputas pela cadeira de prefeito da Cidade sempre deflagraram embates acirrados — até quando esse nem era o nome do cargo de quem comandava Fortaleza ou quando nem era a população quem escolhia diretamente seus representantes.
Nesta sexta-feira (12), véspera da data que marca quase três séculos da elevação de um povoado — localizado no entorno de um antigo forte holandês — à condição de vila, o Diário do Nordeste conta como foi a primeira vez que a própria população de Fortaleza escolheu seu prefeito.
A proposta desta reportagem, que integra o especial “Fortaleza: Que História É Essa?”, é apresentar lugares, pessoas e eventos históricos marcantes na existência de Fortaleza, mas que nem sempre são lembrados no cotidiano da cidade.
Fundada em 13 de abril de 1726, os fortalezenses só puderam escolher seu “prefeito” em 29 de março de 1936, mais de dois séculos após o nascimento da vila de Fortaleza. Quem narra esse marco político é o escritor, professor de História e ex-deputado federal, Artur Bruno.
“No Brasil Colônia, as vilas e cidades eram administradas pelas câmaras municipais. Era escolhido um presidente da Câmara e ele era o gestor daquela comunidade. Durante o Brasil Império, essa lógica se manteve, inclusive é neste período que foi escolhido o Boticário Ferreira, que governou Fortaleza por mais tempo, durante 15 anos, entre 1843 e 1859", explica.
“Com a (Primeira) República, esse quadro mudou porque os estados passaram a eleger seus governadores, que eram chamados de presidentes dos estados. Eram esses presidentes dos estados que nomeavam os chamados intendentes, que eram espécies de prefeitos. Nesta época, ainda não havia eleição direta para gestores municipais, eles eram escolhidos e nomeados por esses presidentes estaduais”, acrescenta.
Nos braços do povo
A conjuntura política nacional mudou completamente com a Revolução de 1930, um movimento que colocou frente a frente as oligarquias de São Paulo contra as de Minas Gerais, Paraíba e Rio Grande do Sul. O resultado foi um golpe de Estado que depôs o então presidente da República, Washington Luís, inviabilizou a posse do presidente eleito, Júlio Prestes, colocou um fim na República Velha e deu início ao "Governo Provisório" de Getúlio Vargas.
Para conseguir se manter no poder e acalmar as insatisfações de lideranças paulistas, o presidente provisório autorizou a elaboração de uma nova nova constituição, promulgada em 1934. Todas essas mudanças ressoavam no Ceará, que também passava por mudanças significativas em um rearranjo de forças.
Essa Constituição inverte a lógica: se antes o presidente da República e os presidentes dos estados eram eleitos e os prefeitos eram nomeados por eles, agora, tanto o presidente quanto os governadores eram escolhidos interinamente, já os prefeitos eram escolhidos pelo voto direto. No caso do Ceará, logo em 1935, a Assembleia Legislativa escolheu Menezes Pimentel como presidente do Estado
A mesma Constituição de 1934, portanto, determinava a realização de eleições municipais em 1936.
O imbróglio sobre a data da eleição
Conforme relatou o advogado e professor Aroldo Mota, no livro “História política do Ceará: 1930-1945”, os embates começaram já na definição da data do pleito. A legislação estadual foi contestada porque, em um dos trechos, determinava que o dia da eleição do primeiro prefeito da Capital seria determinado pela lei orgânica do município.
Na prática, a Lei deixou uma brecha para que, na Cidade, a data fosse definida pelos legisladores municipais. A discussão, levantada principalmente por parlamentares e juristas, foi parar no Tribunal Eleitoral do Ceará. A própria Justiça Eleitoral era uma novidade recente naquela época, criada por Vargas em 1932.
Acionados para resolver o imbróglio, em 10 de fevereiro de 1936, os magistrados marcaram, unanimemente, as eleições da Capital para 29 de março de 1936.
“Nada justifica a monstruosa exceção aberta em relação ao município da Capital, o mais culto do Estado e onde, por isso mesmo, mais fácil é a realização de um pleito eleitoral. Trata-se manifestamente de um expediente partidário, para arrancar, ou burlar, o direito do eleitorado da Capital escolher o seu prefeito, na época fixada pela Constituição do Ceará, para todos os outros municípios”, argumentou o Dr. João Mangabeira em sua decisão na Corte, conforme relata o livro “Primeiras Eleições e Acervo Documental”, do Tribunal Regional Eleitoral do Ceará (TRE-CE).
Mas não era só a data do pleito que provocava dores de cabeça, a inédita participação massiva da população também exigiu mais esforço da Justiça Eleitoral, já que a idade mínima para votar no País caía de 21 anos para 18 anos.
“Assim, o presidente do Tribunal, Des. Olívio Câmara, através de aviso na imprensa, convida os Juízes Eleitorais e Preparadores que se acham nesta Capital, sem licença ou férias, a regressarem imediatamente para os seus respectivos lugares, a fim de que não haja prejuízo para o Serviço Eleitoral, dada a circunstância do próximo encerramento do alistamento”, dizia nota no jornal “Gazeta de Notícias”, em 19 de março de 1936.
A disputa em Fortaleza
Definida a data e alistados todos os interessados em votar, quatro candidatos se apresentaram para o pleito. Conforme narrou o escritor Aroldo Mota, concorreram à eleição da Capital, pelo PSD, o Dr. José Jorge Pontes Vieira; pelo PRP, o Dr. Raimundo Araripe; pelo Partido Republicano Conservador, o ex-interventor interino, Franklin Gondim, e, pelo movimento "Fortaleza, Governa-te", o senhor Carvalho Góis.
A Capital foi dividida em duas grandes zonas eleitorais, com 36 locais de votação — cada um deles com uma seção — e atendeu a um eleitorado de 9,4 mil pessoas.
Para efeito de comparação, Fortaleza tem, atualmente, 17 zonas eleitorais, com 5,4 mil sessões espalhadas por 669 locais de votação, atendendo a um eleitorado de 1,7 milhão de eleitores.
Com a proximidade da eleição, os jornais também passaram a repercutir orientações aos eleitores. Na edição de 12 de fevereiro de 1936, o periódico “O Nordeste” dizia: “Ao eleitor católico, dentro dos seus pontos de vista de consciência, cabe votar bem, salvaguardando os interesses de Deus e do Ceará”.
Aviso aos presidentes das Mesas Receptoras das eleições que, ultimados os seus respectivos trabalhos, devem entregar as urnas no prédio do Tribunal do Jury a Praça do Ferreira, local destinado à apuração do pleito, a qual terá início às 13 horas do dia 30
“Mulher católica! Mulher católica! Eleitora da LEC (partido Liga Eleitoral Católica), que asseguraste (...) a vitória das nossas aspirações, vai votar!”, dizia nota n“O Nordeste”, em 22 de março de 1936.
No livro “História política do Ceará: 1930-1945”, Aroldo Mota resgatou como foi o dia da eleição.
“No interior, a eleição começou bastante agitada. O secretário do Interior, José Martins Rodrigues, e o vice-presidente em exercício da presidência do Partido Republicano Progressista, deitou nota aos seus correligionários em que reclamava calma: ‘para evitar explorações nossos adversários, Partido Republicano Progressista recomenda novamente absoluto respeito lei, acatamento Justiça Eleitoral, bem assim toda vigilância parte seus delegados obtenção provas referente violação direitos eleitorais, a fim promover punição culpados’", recontou.
Primeiro prefeito eleito por voto direto
A 60 anos da implementação das urnas eletrônicas no País, a votação em 1936 era feita com o depósito de duas cédulas de papel (uma com voto para vereador e outra para prefeito) em um envelope. A apuração demorava semanas para ser concluída.
No caso da Capital, somente em 14 de abril de 1936, duas semanas depois da eleição, os jornais anunciaram o término da apuração. Em 7 de maio, o Tribunal Regional Eleitoral do Ceará homologou a votação e proclamou o resultado: Raimundo de Alencar Araripe foi eleito prefeito de Fortaleza pelo PRP por voto direto da população.
APURAÇÃO DAS URNAS EM FORTALEZA:
- Raimundo de Alencar Araripe (PRP): 3.671 votos
- João Jorge de Pontes Vieira (PSD): 3.325
- João de Carvalho Góes (Fortaleza, Governa-te): 1.485
- Franklin Monteiro Gondim (PRC): 965
- Total de eleitores: 9.446
Onze dias depois, em 18 de maio, às 13 horas, no edifício da antiga Assembleia Legislativa do Ceará, o Palácio Senador Alencar, onde atualmente está o Museu do Ceará, o prefeito foi oficialmente empossado.
Participação popular, mas de que povo?
Apesar da escolha do prefeito ter sido por voto direto da população que tivesse mais de 18 anos, incluindo a participação facultativa de mulheres (a exigência era apenas para as que tinham cargos públicos remunerados), o voto era restrito a pessoas alfabetizadas.
O professor Artur Bruno pondera que essa regra restringia a participação a uma fatia da sociedade de Fortaleza.
O voto dos analfabetos só foi instituído com a Constituição de 1988. Na década de 1930, o Brasil tinha mais de 50% de analfabetos, então era uma eleição que já não tinha a maioria da população
“Em 1932, Vargas criou a Justiça Eleitoral, foi quando começou o voto secreto, mas havia uma participação muito pequena, muita dificuldade de deslocamento, não se podia dizer que havia uma democracia plena. Só vamos ter partidos relativamente fortes com a redemocratização, de 1946 e 1964, então era uma participação pequena, com partidos oligárquicos”, acrescenta.
Eleito pelo povo, mantido por Vargas
Conforme o professor Artur Bruno, o mandato eletivo para o qual Alencar Araripe foi eleito acabou logo sendo ameaçado. Já no ano seguinte, Getúlio Vargas deu o golpe do Estado Novo, que mudou novamente as regras políticas do País. O prefeito de Fortaleza, no entanto, conseguiu se manter no cargo em uma aproximação política com o então presidente do Estado (governador), Menezes Pimentel.
“Um ano depois que ele foi eleito, ocorreu o Golpe do Getúlio, em 1937, que cassou o mandato dos parlamentares, prefeitos e governadores, colocando interventores no lugar. O detalhe é que, no Ceará, ele manteve o presidente do Estado, que era o Menezes Pimentel — por isso ele governou o Ceará até 1945. E o Menezes decidiu manter o Raimundo de Alencar Araripe, que governou Fortaleza até 1945 ”, explica.
foi o tempo que Raimundo Araripe comandou a Prefeitura de Fortaleza
“Ou seja, ele foi eleito pelo voto direto, mas o que o manteve foi ter o mandato esticado pelo Menezes Pimentel. Inclusive, o Raimundo de Alencar é um dos prefeitos que ficou mais tempo no cargo. O que ficou mais tempo foi o Guilherme Rocha, na época da oligarquia Accioly, ele ficou de 1892 a 1912, foram 20 anos. Depois tem o Boticário Ferreira, por 15 anos durante o Império. Em seguida, está o Raimundo, que ficou 9 anos”, conclui.
Mais recentemente na história de Fortaleza, o ex-prefeito Juraci Magalhães atingiu a marca de 9 anos no comando da Capital. Ele administrou Fortaleza entre 1990 e 1992, em seu primeiro mandato. Em 1997, chegou novamente à Prefeitura, sendo reeleito no pleito seguinte e deixando o Executivo somente em 2004.
“O Raimundo de Alencar foi um ‘fazedor’ de obras. Ele teve muito apoio dos governos do estado e federal”, narra Artur Bruno. Ao longo dos quase dez anos em que comandou Fortaleza, o prefeito foi responsável pela inauguração de equipamentos importantes para a Capital, conforme relatou o professor universitário de História Pedro Alberto de Oliveira Silva.
Hiato democrático
Em artigo publicado pelo Instituto do Ceará, ele cita, por exemplo, a sede da Assistência Municipal de Fortaleza, à época comandada pelo médico Dr. José Frota. Hoje, no local, funciona o Instituto Doutor José Frota. Em maio de 1937, o prefeito inaugurou a Cidade da Criança, no antigo Parque da Liberdade, uma instituição modelo em educação no País, e, em setembro de 1941, inaugurou o estádio Presidente Vargas.
Após o fim do primeiro governo eleito por voto popular — e esticado por um interventor — em Fortaleza, a população da Capital só voltaria às urnas para escolher um prefeito em 1947, quando elegeu Acrísio Moreira da Rocha (ex-interventor do Estado).
No pleito seguinte, nova participação popular para a eleição, em 1950, de Paulo Cabral de Araújo. Já em 1954, foi a vez de Acrísio Moreira da Rocha retomar a Prefeitura da Capital, também pelo voto popular. Em 1962, naquele que foi o último pleito com a participação do povo antes da ditadura militar, Murillo Borges foi eleito.
Os fortalezenses só votaram novamente em 1985, para eleger a então petista Maria Luíza Fontenele, a primeira mulher a governar Fortaleza.