Quase metade da população do País não tem acesso à coleta e ao tratamento de esgoto. São pessoas que convivem com águas residuais escoando a céu aberto, cujo dejetos, muitas vezes, não têm o fim apropriado. Para tentar resolver o problema histórico, o Congresso Nacional aprovou em 2020 o novo Marco Legal do Saneamento Básico (lei 14.026/2020 e decretos presidenciais), que ampliou a abertura para a iniciativa privada atuar no setor como alternativa para universalizar o esgotamento sanitário e o abastecimento de água em todo o País.
O novo marco impôs, de forma obrigatória, a meta para atender 90% da população com coleta e tratamento de esgoto para os entes públicos cumprirem até 2033. Em relação ao abastecimento de água, que tem índices melhores que o esgotamento, a meta é alcançar 99% da população nos próximos 10 anos. Até lá, o investimento estimado é de R$ 900 bilhões, conforme projeções da Associação e Sindicato Nacional das Concessionárias Privadas de Serviços Públicos de Água e Esgoto (Abcon-Sindcon).
Os recursos para universalização do saneamento devem passar de públicos para privados, ou serem mistos em alguns casos. Os contratos devem ser celebrados por meio de concessões comuns ou parcerias público-privadas (PPPs). Para isso, a lei 14.026/2020 determina a regionalização do abastecimento de água e tratamento esgoto e propõe que os municípios se unam, em consórcios ou em acordos, para contratar empresas por meio de concessões — já que municípios menos populosos podem se unir com os que têm mais habitantes e ficar atrativos para a iniciativa privada.
Juntas, as prefeituras teriam mais capacidade para atrair investimentos, que, sozinhas, não seriam capazes de fazer. A regionalização, inclusive, pode partir do Estado, que entra como guarda-chuva para dar suporte às prefeituras. É o caso do Ceará.
Com a atração do investimento privado por meio de concessões ou PPPs, as empresas que ganham os leilões ficam com a arrecadação da tarifa cobrada pelo serviço, por exemplo. A depender do caso, podem receber subsídios do poder público, caso o ente opte por aumentar percentual de habitantes isentos da cobrança.
Em todo o Brasil, 117,8 milhões de pessoas têm acesso ao tratamento de esgoto, o que representa apenas 55,8% da população do País. A região Norte é a com menor cobertura, de 14%, enquanto a região Sudeste tem a maior, de 87,4%. Em relação ao abastecimento de água, 177 milhões de pessoas (84,2%) são atendidas — cerca de 60 milhões a mais do que pela rede de esgoto. Os dados são do Sistema Nacional de Informação sobre Saneamento (SNIS), referentes a 2021.
Fiscalização nos editais
Para garantir que as contratações sejam de qualidade e haja investimento contínuo, os tribunais de contas estaduais têm feito uma fiscalização prévia nos contratos, avaliando se eles atendem aos itens determinados pela lei e aos critérios exigidos pela Agência Nacional de Águas e Saneamento Básico (ANA).
Dessa forma, as Cortes podem atuar de forma preventiva, orientando os entes ou órgãos responsáveis em caso de necessidade de modificação nos editais, já que as concessões têm prazos de 30 a 35 anos. É o que explica Rodrigo Nascimento, presidente do Tribunal de Contas do Estado do Rio de Janeiro (TCE-RJ) e do Comitê Técnico de Concessões, Parcerias Público-Privadas e Privatizações do Instituto Rui Barbosa (IRB) – associação civil criada pelos tribunais para capacitar e aperfeiçoar as atividades do corpo técnico dos órgãos.
“Os tribunais de Contas têm estado muito atentos aos editais de licitação para concessão desse serviço, porque o ideal é que eles sejam analisados antes de serem contratados, por serem contratos que vão durar muito tempo e por terem valores muito altos. Uma vez lançado o edital e selecionado o prestador de serviço, os tribunais de contas precisam fiscalizar se o serviço está sendo regularmente prestado para aquilo que foi contratado”, conforme explica Nascimento.
Além das Cortes de Contas, agências reguladoras estaduais, Ministério Público e os próprios entes da federação são responsáveis pela fiscalização dos serviços prestados pelas concessionárias contratadas.
Apesar das concessões ou PPPs poderem durar até 35 anos, as metas de universalização devem ser atingidas até 2033.
Novas regras
A nova lei passou a exigir que o serviço de saneamento básico no País seja universalizado, propondo como alternativa a possibilidade de prestação regionalizada do saneamento por meio de concessões comuns ou PPPs, para que a melhor concorrência vença o edital.
Antes, o próprio poder concedente, no caso, o município, poderia prestar o serviço de forma autônoma, contratar a concessionária estadual ou fazer uma licitação para chamar um ente privado, por exemplo. Assim, as companhias estatais — que podiam ser contratadas pelos municípios por meio de contratos de programa com dispensa de licitação — perderam a preferência pela gestão do abastecimento de água e tratamento de esgoto. Esse artigo foi revogado com o novo marco legal.
Rodrigo Nascimento explica que as estatais podem continuar operando os serviços, desde que tenham contratos de programa em vigor e atendam as regras e metas de universalização — incluindo comprovação de capacidade financeira para a ampliação do abastecimento de água e esgoto até 2033. Caso contrário, os contratos são considerados irregulares e devem ser extintos. Além disso, novos contratos de programas com companhias estatais não podem ser celebrados. Para elas continuarem operando, precisarão disputar o edital de concessão com ampla concorrência com as empresas privadas.
"A maior parte dos municípios brasileiros ainda possui contratos de programa com estatais. É o modelo que vigorou por décadas, desde a época do regime militar, mas é um modelo que se esgotou. O novo marco legal estabelece as concessões regionalizadas. Então, causa grande preocupação aos tribunais de contas prefeituras ainda terem contratos de programas vigorando até 2033, ou após 2033. Os municípios têm que fazer alguma coisa, tem que ser concessão regionalizada"
Por isso, ele explica que os municípios devem ficar atentos aos prazos para aderir à regionalização, publicar edital de licitação para concessão dos serviços e para substituir o contrato irregular por concessão. Os tribunais, inclusive, vão fiscalizar a adesão. As prefeituras têm até 2025 para estar de acordo com as regras de universalização do novo marco legal.
Os entes que optarem por não aderir a regionalização e continuar prestando o serviço de forma autônoma, por meio de autarquias municipais, por exemplo, terão que comprovar capacidade de cumprir as metas de universalização estabelecidas pelo novo marco legal. Caso contrário, poderão deixar de receber incentivos e fazer empréstimos com garantia da União após 31 de dezembro de 2025.
Superintendente técnica da Abcon-Sindcon, Ilana Ferreira destaca que a maior abertura para a empresa privada atuar é um avanço, já que muitas estatais não têm condições de cumprir as metas. Além disso, elas irão aportar recursos próprios em troca da arrecadação tarifária, o que já é feito pelas companhias.
"Parceria com o setor privado sempre foi permitida, a grande questão que a legislação trouxe é que havia uma série de contratos de municípios com companhias estaduais que não passavam por um processo concorrencial, por licitação, e nem sempre o serviço avançava. O novo marco incentiva o processo concorrencial, sempre respeitando a prestação direta e o fim dos contratos de programas com estatais"
A superintendente destaca, ainda, que as tarifas serão reguladas pelos órgãos públicos competentes.
Regionalização
A prestação regionalizada do saneamento básico deve integrar um ou mais componentes dos serviços públicos — como abastecimento de água, coleta e tratamento de esgoto, coleta de resíduos sólidos e drenagem de águas pluviais — em uma determinada região do estado, que abarque mais de um município.
Dessa forma, a regionalização pode ser feita por meio de região metropolitana ou microrregiões instituídas pelos estados mediante lei complementar; por unidade regional de saneamento, que deve ser implementada também pelos estados por lei ordinária; ou por bloco de referência, este último dá mais autonomia aos municípios para se agruparem como desejarem, sem necessariamente serem limítrofes.
No caso dos estados que já editaram lei sobre o assunto, os municípios já estão regionalizados automaticamente, ficando sob o guarda-chuva do governo estadual. Nessas situações, os Poderes Executivos Estaduais vão dar suporte técnico às prefeituras, podendo, inclusive, lançar editais de concessão se elas assim permitirem.
Um exemplo que Rodrigo Nascimento cita é o que ocorreu no Rio de Janeiro, por meio da com a Companhia Estadual de Águas e Esgotos (Cedae). Um ano após o novo marco legal do saneamento básico, a Cedae realizou leilão para concessão do abastecimento de água e de tratamento de esgoto em bairros da cidade do Rio de Janeiro e em outros municípios que atuava no Estado. O leilão foi um dos maiores já realizados no setor, arrecadando cerca de R$ 22 bilhões. Assim, a Companhia passou a atuar apenas na captação e venda da água potável tratada para as concessionárias que vão prestar o serviço.
Como não tinha recursos financeiros para cumprir as metas do novo saneamento, o leilão concedeu a estrutura do abastecimento e da coleta e tratamento de esgoto da Cedae para as empresas vencedoras dos editais de concessão.
"Essa concessão foi dos serviços de distribuição de água e coleta e tratamento de esgoto. Houve quatro blocos, não foram abarcados todos os municípios. Mais da metade dos municípios aderiram a essa concessão, mas há outros que não aderiram. Essa concessão foi feita entre os municípios e o Estado (do Rio de Janeiro), que acabou coordenando isso. O Estado e os municípios entraram em um acordo e escolheram a agência estadual para fiscalização e fazer a ordem de serviço", explica o presidente do TCE-RJ.
Com a concessão, no Rio, as empresas vencedoras do leilão passarão a fazer a cobrança da tarifa de água e esgoto, não mais a Cedae.
Ceará
No Ceará, a regionalização do saneamento básico foi feita em 2021 pelo Governo do Estado, com a divisão do território cearense em três microrregiões de água e esgoto. São elas: a Oeste, Centro-Norte e a Centro-Sul. Os municípios agrupados nessas regiões já podem aderir a concessões (confira mapa).
Por isso, a Companhia de Água e Esgoto do Estado (Cagece) já começou a lançar PPPs em municípios atendidos para atender às metas de universalização estabelecida pelo novo marco legal do saneamento básico. Por ter contratos com prefeituras até 2055, ela é a responsável por coordenar os processos licitatórios nos territórios. Ao todo, a Cagece está presente em 152 dos 184 municípios cearenses.
Até o momento, 24 cidades atendidas pela companhia foram contempladas com PPPs para ampliação do esgotamento sanitário, na região metropolitana de Fortaleza e do Cariri. A empresa Ambiental Ceará venceu os leilões e vai investir R$ 19 bilhões para ampliar a coleta e tratamento de esgoto, até 2033, nas cidades.
Como contrapartida, a Cagece irá repassar a tarifa de esgoto paga pelos contribuintes dos municípios à medida que os serviços forem executados. De acordo com Neuri Freitas, presidente da Cagece e da Associação Brasileira das Empresas Estaduais de Saneamento (Aesb), a medida é uma forma de atender às exigências do novo marco legal sem que a estatal deixe de ser a responsável por fiscalizar, gerenciar e cobrar as tarifas aos consumidores.
"O que a gente fez foi um contrato de operação, manutenção e expansão das redes de esgoto. A empresa vai prestar um serviço para a Cagece e vai receber uma tarifa por esse serviço que foi prestado, tendo como base o faturamento de esgoto. Então, o cliente continua sendo da Cagece, o relacionamento é com a Cagece, o cliente paga à Cagece e, ao final do mês, a gente avalia se a empresa cumpriu todos os requisitos contratuais. Se tiver cumprido tudo, a gente faz o pagamento conforme pactuado. Se não tiver cumprido alguma coisa, algumas sanções podem ser impostas, inclusive de redução dos valores a serem pagos"
Para Neuri Freitas, o modelo adotado no Ceará é possível porque a Cagece tem uma "estrutura organizada" e pôde comprovar que vai cumprir o marco legal, inclusive com parceria privada. Até agora, os leilões foram apenas para esgotamento sanitário.
Para ampliação do abastecimento de água, a companhia não avalia, no momento, fazer PPPs, já que tem um alto percentual de atendimento, conforme avalia o presidente da Cagece, ressaltando que o atendimento da companhia é em áreas urbanas, não rurais.
"A cobertura da Cagece não é igual a cobertura do Ceará, porque a Cagece está em 152 municípios", frisa Neuri.
Análise dos editais
Secretário Executivo do Tribunal de Contas do Ceará, Marcel Albuquerque ressalta que os editais de PPPs para concessão do saneamento da Cagece foram enviados previamente ao Tribunal, o que possibilitou a solicitação de ajustes na redação antes que uma empresa vencesse o leilão. Por isso, ele pede para os entes enviarem os editais antes de celebrarem as concessões.
"O TCE está de olho. Antes de publicar o edital, mande a documentação toda. Se o ente não mandar, o Tribunal pode entrar com uma medida cautelar até suspendendo o edital se encontrar indícios de irregularidades. Isso fica ruim para as empresas que querem participar, porque entra numa fase de litígio, é demorada, é complicada. Todo mundo quer o serviço chegando o mais rápido possível, mas o Tribunal tem uma instrução normativa, e, se eles não cumprem, infelizmente o Tribunal vai ter que tomar as medidas caso encontre alguma irregularidade"
Para Marcel, se o processo licitatório for bem-feito, o serviço com certeza será bem executado, porque terá que atender todos os padrões estabelecidos, inclusive de qualidade.
Diretor de operações da Ambiental Ceará, Fernando Lima destaca que o modelo de concessão do Ceará se destaca no País, por condicionar os repasses financeiros das tarifas a diversos critério de prestação do serviço.
"Esse contrato também tem algumas características particulares, ele é acompanhado pelo cumprimento de indicadores de performance, de cumprimento de prazos, prestação de serviços, é muito bem amarrado para o cumprimento desses serviços. E tem parâmetros para que a gente garanta uma performance desses serviços", destaca Fernando Lima.
Atualmente, apenas 30% (cerca de 2,8 milhões de habitantes) da população do Ceará tem cobertura de esgotamento sanitário. Esse índice deve chegar a 90% até 2033. Em relação ao abastecimento de água, 59,7% da população é atendida pela rede. Os dados são do SNIS, referentes a 2021.