Desde que a pandemia do novo coronavírus começou a avançar pelo Ceará, pelo menos três lideranças políticas do Estado, que estavam detidas por acusações diversas, deixaram a prisão: o ex-prefeito de Uruburetama, José Hilson de Paiva; o ex-presidente da Câmara Municipal de Maracanaú, vereador Carlos Alberto Gomes de Matos Mota; e o presidente afastado da Câmara de Quixadá, vereador Ivan Construções.
Os três foram beneficiados por uma recomendação do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), de 17 de março deste ano, que prevê a revisão das prisões preventivas diante do cenário de pandemia. Ou seja, aplicando-a aos casos em que a investigação ainda não foi concluída, e que por isso não há condenação.
Ao Diário do Nordeste, o CNJ explicou que a adoção da medida tem o objetivo de evitar a propagação da infecção pelo novo coronavírus, causadora da Covid-19, no âmbito dos sistemas de justiça penal e socioeducativo, mas a possibilidade de soltura diante da atual pandemia também tem sido alvo de críticas.
O Conselho diz que a recomendação traz orientações ao Poder Judiciário em cinco pontos principais. O primeiro é a redução do fluxo de ingresso no sistema prisional e socioeducativo; além de medidas de prevenção na realização de audiências judiciais nos fóruns; e a suspensão excepcional da audiência de custódia, mantida análise de todas as prisões em flagrante realizadas.
Casos
O texto do CNJ também aborda ação conjunta com os Executivos locais na elaboração de planos de contingência; e suporte aos planos de contingência deliberados pelas administrações penitenciárias dos estados em relação às visitas em meio à pandemia.
Com 71 anos, e preso desde julho do ano passado, José Hilson de Paiva, acusado de estuprar dezenas de pacientes em consultório médico nos municípios de Cruz e Uruburetama, foi um dos beneficiados no contexto da pandemia, com prisão domiciliar.
A defesa do ex-prefeito alegou, no pedido da medida cautelar na Justiça, que “o delicado estado de saúde do senhor José Hilson, já demonstrado em outras ocasiões, o torna especialmente vulnerável a essa infecção viral”.
Também recorrendo ao cenário do novo coronavírus, os dois vereadores, acusados de crimes contra a administração pública, conseguiram deixar a prisão e ter o direito de voltar a circular socialmente nos municípios de Maracanaú e Quixadá, com o uso da tornozeleira eletrônica. A reportagem não conseguiu contato com os parlamentares citados nem com as defesas.
Ministério Público
O promotor de justiça Marcelo Cochrane, que atuou na Operação Casa de Palha, deflagrada no ano passado em Quixadá, vê como prejuízo as decisões judiciais em relação aos casos citados na reportagem. Segundo ele, lideranças políticas que praticam crimes do “colarinho branco”, desviando recursos públicos, participam de “esquemas difíceis de serem investigados”.
A Operação Casa de Palha, que resultou na prisão do vereador Ivan Construções, investigou a existência de crimes de fraude em licitações, entre outros ilícitos, na Prefeitura e na Câmara Municipal de Quixadá.
Para Cochrane, “essas pessoas gozam de grande influência regional” e a soltura pode causar intimidação das testemunhas, já que a investigação que envolve o vereador Ivan Construções, por exemplo, ainda não foi encerrada. “As pessoas temem, e mostra descrédito da Justiça”, argumentou o promotor. O MPCE ainda deverá apresentar novas denúncias ao caso.
Inocência
O advogado criminalista Waldir Xavier, do Conselho Nacional da Associação Brasileira dos Advogados Criminalistas, pontua que, nos casos de lideranças políticas beneficiadas com a recomendação do CNJ, “a conversão da prisão cautelar em outra medida alternativa da segregação não implica, automaticamente, na reassunção de cargo público”.
Ele explica ainda que “agentes políticos, na maioria das vezes, têm seus respectivos afastamentos dos cargos exercidos por determinação judicial, o que, em tese, neutralizaria a possibilidade de algum prejuízo à população”.
De acordo com o criminalista, que é membro da Comissão de Estudo de Direito Penal da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), “não se pode descuidar da presunção de inocência que vigora nos casos em que não haja sentença penal condenatória passada em julgado”.
Segundo Waldir Xavier, “eventual intimidação de testemunhas, ou qualquer outra interferência no bom andamento do processo, implicará em revogação fundamentada da medida e no restabelecimento de prisão preventiva, como prevê o próprio Código de Processo Penal”.
Excepcionalidade
Para o procurador da República do Ministério Público Federal (MPF), Samuel Arruda, cada caso precisa ser avaliado na forma da lei, e em específica particularidade. Se houver a necessidade de manter o réu no presídio, mesmo no cenário de avanço da Covid-19, ele defende que deve ser mantida a prisão.
No entanto, Arruda ressalta que há medidas cautelares que podem ser tomadas com o objetivo de impedir, por exemplo, que um político deixe a prisão e atrapalhe as investigações contra ele. O membro do MPF cita o impedimento do acesso à comunicação como uma das possibilidades.
O procurador defende, a partir do que prevê a recomendação do CNJ, que a modalidade preventiva de prisão precisa ser, e não apenas em um cenário de caos na saúde, uma excepcionalidade.
“Eu sempre entendi a prisão preventiva como uma medida excepcional. A regra é que a pessoa seja presa com a condenação. Geralmente, esse tipo de prisão decorre de uma necessidade. Seja porque o investigado está destruindo provas, ou tem um risco de fuga. Ela é sempre excepcional. Quando a gente tem uma situação como essa, de um desafio dessa magnitude que coloca os desafios sob todas as perspectivas, temos que sopesar esses riscos”.
Debate
Samuel Arruda acredita que o debate sobre a prisão preventiva deverá ganhar força nos próximos meses. O procurador da República defende a adoção de medidas cautelares paralelas para evitar que a excepcionalidade se torne regra, superlotando os presídios brasileiros.
“O Supremo Tribunal Federal já reconheceu que estamos vivendo uma situação muito difícil. Isso já foi reconhecido, que o sistema prisional está numa situação de quase colapso. A gente não tem estrutura física para isso. Temos um contexto de superlotação. Esse é um ponto, um panorama anterior à pandemia, a essa recomendação, que já exigia um cuidado”, explica.