A ação movida pelo presidente Jair Bolsonaro (sem partido) no Supremo Tribunal Federal (STF) para tentar derrubar medidas de isolamento em três unidades da Federação (Bahia, Rio Grande do Sul e Distrito Federal) provocou críticas dos governadores do Nordeste, que publicaram carta sobre o assunto nesta sexta-feira (19), e também de deputados federais cearenses, que, em maioria, tiveram reações negativas. Entre analistas, uma das interpretações é que o presidente, mesmo sem expectativa de sucesso na Suprema Corte, se posiciona para sua base e tenta deliberadamente tensionar ainda mais as relações institucionais.
A carta assinada pelos nove governadores do Consórcio Nordeste declarou “muita surpresa” em relação à ação, chamada de “inusitada”. O documento cobra união de esforços para enfrentar a pandemia.
“Mais uma vez convidamos o presidente da República a somar forças na luta contra o coronavírus, que tem trazido tantas mortes e sofrimentos. E reiteramos que só existe uma formar de proteger a economia e os empregos: enfrentar e vencer a pandemia. Fizemos a proposta de um Pacto Nacional pela Vida e pela Saúde e continuamos aguardando a resposta do presidente da República”, diz trecho da publicação.
Em abril do ano passado, o próprio STF reconheceu “competência concorrente” de estados, municípios e União em relação à Saúde Pública, garantindo autonomia para que os entes da Federação estabelecessem medidas de isolamento social e fechamento de atividades para frear o avanço do coronavírus. Agora, Bolsonaro cobra que o Tribunal defina que o fechamento de atividades não dependa apenas de decretos dos governadores, devendo passar antes pelo Legislativo.
Reações na bancada cearense
A decisão do Supremo, no segundo mês de pandemia, atendeu a ação movida pelo PDT, partido do deputado federal cearense André Figueiredo, que chama o atual momento do Brasil de “catástrofe inigualável”.
“Quando a gente está tratando de saúde pública, tanto governadores como prefeitos têm o mesmo poder da União de legislar, e nós temos absoluta convicção de que se o PDT não tivesse entrado com uma ação no STF para que o Supremo se manifestasse àquela época que a competência é concorrente, o Bolsonaro, com esse viés negacionista que ele vem tentando incutir no povo brasileiro, tinha liberado tudo, e a gente não estaria, talvez, com 300 mil óbitos. Estaria com um número muito maior”, avalia.
Já o deputado José Guimarães (PT) ressalta a problemática da crise federativa que a ação evidencia.
“Os estados têm autonomia administrativa, financeira e política, principalmente em tempos de pandemia, para tomar qualquer medida que seja necessária para proteger os seus habitantes. Isso é uma violência que Bolsonaro faz com a Federação. A Federação são três entes, municípios, estados e União, e ele não manda nos estados", afirma.
Para o petista, "sem essas ações dos governadores, a situação poderia estar muito pior. O Brasil caminha para uma carnificina, porque nós não temos vacina, e ele é o responsável por isso”.
Entre os parlamentares da bancada federal, há também quem cobre menor restrição às atividades econômicas, caso de Heitor Freire (PSL).
“Eu entendo que nós estamos passando por um momento delicadíssimo na história do Brasil por conta da pandemia. Mas fechar tudo indiscriminadamente e, principalmente, sem oferecer alternativas só vai piorar a situação. O Ceará é um exemplo, com vários setores da nossa economia sendo crucificados e levando praticamente toda a culpa pela disseminação do coronavírus", argumenta.
Sobre a ação de Bolsonaro, ele diz achar "justo que o STF possa interferir para tentar equilibrar o fechamento das atividades com medidas de apoio que não deixem a população à mercê da própria sorte”.
Tensionamento e resposta à base
Segundo o cientista político Emanuel Freitas, professor da Universidade Estadual do Ceará (Uece), a ação é uma “batalha perdida”, uma vez que o STF já se posicionou sobre o assunto, mas serve de expediente para mobilizar a militância e tensionar ainda mais as relações institucionais, reforçando a narrativa de Bolsonaro em momento de crescente pressão sobre o Governo Federal.
“Isso funcionará para o presidente dizer aos seus apoiadores que tentou reverter esse jogo no STF, para tentar retomar atividades econômicas, mas que o STF não deu ganho de causa a ele. E aí o causador do desmonte econômico nos estados e municípios não é ele. É o STF, são os governadores e prefeitos. É também uma certa forma de dizer que a batata não vai assar só para o Governo Federal”, pontua.
O contexto político também inclui a crescente reprovação ao Governo apontada pela pesquisa Datafolha divulgada na terça-feira (19), as manifestações recentes de apoiadores do presidente pedindo o fim das medidas restritivas e a própria aprovação da prorrogação auxílio emergencial no Congresso, que, mais uma vez, leva Bolsonaro a cobrar dos governadores uma contrapartida aos recursos que serão liberados. No caso, o relaxamento das restrições às atividades.
O presidente mobiliza a ação contra unidades da Federação comandadas por opositores: Rui Costa (PT), Eduardo Leite (PSDB), cotado pelo partido para disputar as eleições presidenciais no próximo ano, e Ibaneis Rocha (MDB), criticado recentemente por Bolsonaro, que chamou de “estado de sítio” o toque de recolher imposto no Distrito Federal.
Emanuel Freitas observa um recado que pode estar por trás do discurso. “A linguagem autoritária de estado de sítio, por exemplo, é muito presente no vocabulário do presidente e de seus apoiadores. Talvez sirva para que o presidente diga ‘se os governadores podem decretar restrição à circulação de pessoas, então o Governo Federal também poderá’”, projeta o cientista político, relembrando frase dita hoje por Bolsonaro no Palácio do Alvorada, de que “vai acabar chegando” o momento de decretar estado de sítio.