Democracia ameaçada

Ainda traumatizado pela inacreditável e surpreendente investida golpista contra a sua maior democracia – os Estados Unidos da América – insuflada pelo próprio presidente da República, que convocou para isso seus seguidores, o mundo, que a tudo assistiu, respira hoje aliviado, pouco mais de 48 horas depois da invasão do Capitólio por uma horda de vândalos. Inédito, inconcebível e gravíssimo por se tratar da maior economia e da maior potência militar do planeta, o fato está servindo, agora, para a reflexão da ciência política, dos historiadores e dos que pensam sobre o comportamento humano. O coração da democracia foi perigosamente ameaçado de um enfarte, logo, todavia, debelado pelos seu próprio e eficiente sistema de autodefesa.

Centenas de apoiadores do presidente republicano, a seu pedido, marcharam contra a sede do Congresso norte-americano, invadiram e depredaram suas dependências, causando a morte de cinco pessoas. Senadores e deputados que estavam lá reunidos para homologar a eleição presidencial do democrata Joe Biden foram expulsos do seu local de trabalho, ao qual retornaram no fim da noite para cumprir o rito constitucional de proclamação do resultado do pleito, cujas denúncias de fraude foram consideradas infundadas.

Se o trauma que as cenas provocaram acendeu a luz amarela nas demais democracias ocidentais e orientais, reacendeu, também, a certeza de que, apesar de todos os seus defeitos, é esse regime político o único que garante as liberdades individuais, a livre iniciativa, o contraditório e a participação de qualquer um no processo eleitoral de escolha dos governantes e legisladores. Nas ditaduras, de direita ou de esquerda, nada disso é permitido.

Uma prova de que o sistema de autodefesa da democracia funciona no modo automático aconteceu no mesmo instante em que se via a invasão ao Capitólio: as bolsas de valores da Ásia e, em seguida, as da Europa, dos EUA e do Brasil operaram e fecharam em alta porque se proclamou a vitória de Joe Biden, o que assegura, de antemão, uma melhor perspectiva para a economia ao longo dos próximos quatro anos.

Por culpa de ditadores, o mundo já enfrentou duas guerras que tiraram a vida de mais de 60 milhões de pessoas. A última delas teve como consequência a construção de acordos e tratados que permitiram o período de paz que atravessamos, sem embargo dos conflitos pontuais na Coreia, no Vietnã, no Oriente Médio, nos balcãs e em estados que se apartaram da antiga URSS. 

Cada evento semelhante ao da última quarta-feira, em Washington, faz ressurgir, como agora acontece, a natural admoestação: a eleição de um líder político é algo muito grave, que exige do eleitor ponderação e prudência. A mesma prudência e cautela que se reivindica do eleito. Infelizmente, ao atual presidente dos EUA, que está apenas a 11 dias do fim do seu tumultuado mandato, faltaram estas e outras virtudes, como a de reconhecer a derrota e parabenizar o opositor pela vitória.

Em vez desse gesto de grandeza, ele tentou um golpe contra um dos símbolos da democracia do seu país, o Congresso. Perdeu a aposta. Pelos próximos dias, será motivo do escárnio mundial. O que se passou nesta semana nos EUA serve de boa advertência para todo o mundo democrático.