Quem vive em uma cidade do litoral tem sempre, no horizonte azul, uma referência de localização e estado de espírito. O mar é de todos, é de graça. Qualquer habitante de uma cidade tem acesso e direito a ele. Em Fortaleza, da antiga Ponte dos Ingleses ao Mucuripe, as pessoas e os locais vão contando quem somos.
A partir das quatro horas da manhã os ciclistas, caminhantes e corredores já começam as suas atividades de praia. É bonito de ver o dia nascendo, o sol, ainda manso, prateando a água. Sem o motor dos carros é possível escutar mais alto o som das ondas. Dezenas de pessoas acordam bem cedo para viver esse espetáculo, tomar suas doses de vitamina D e esperança.
O mar é uma lição de permanência e fé: está lá, todos os dias, aguardando os raios de sol, deixando o vento encrespar as ondas. A natureza nos consola em tempos ruins.
Foi para viver esse espetáculo que decidi começar a andar e tentar correr pela manhã. Ouvi muitos casos de pessoas que iniciaram depois dos cinquenta, sessenta anos, eu ainda estou no lucro. Minha aluna Bruna Brasileiro, que virou amiga, começou seus treinos de corrida por influência de sua mãe. Parece que vicia, nesse caso um vício do bem.
As metas começam humildes: um quilômetro, cinco, dez, até as maratonas completas. A Bruna correu a incrível Two Oceans, do Oceano Atlântico ao Pacífico, na África do Sul.
Não há limites para quem aprende a ser feliz acelerando o passo.
Nas minhas tentativas de treinos, o que me distrai das metas é observar as pessoas e ouvir os pedaços de conversas que passam no contra fluxo. Sou escritora, olhar com atenção faz parte do meu ofício. Também observo os trabalhadores, as bicicletas com café e tapioca, as banquinhas de água de coco e guaraná em pó batido com inúmeros estimulantes naturais. Os habilidosos equilibristas de skate e patins testam a emoção com seus desvios inesperados.
Sobre os animais, os gatos são donos da praia e não querem saber de nenhum aprisionamento. Andam livres, correm para onde querem, dormem e acordam ao sabor de sua preguiça. Os cachorros, nas coleiras dos seus donos, desenvolvem um sistema de comunicação muito curioso, de amor e ódio. Tem briga, mas também tem namoro.Os cães de rua são livres, mas nem tanto. Claramente tem um líder, de pelo preto, que manda em um grupo de cinco ou seis vira latas cor de caramelo. É posudo, aquele cachorro. Até o latido é de quem manda. Já outros preferem a companhia dos carroceiros, devotam lealdade a eles, sob chuva ou sol. Estão lado a lado com seus donos, mexendo no lixo, juntando o que é possível para revender por quase nada.
A certa altura vejo sempre uma senhora que mora ali, em um dos bancos. Usa calça jeans, chapéu e guarda três ou quatro sacos plásticos, cheio de coisas. Sempre percebo alguém perto dela oferecendo café, suco, alguma comida. E lá ela permanece, no mesmo lugar. invariavelmente. Um dia desses, quando passei, ela estava escrevendo algo em um caderno. Queria muito saber o que ela anotava ali. Seriam suas memórias? Esboços de cartas? Algo impossível de compreender?
Não sei o nome dela, mas sua condição de miséria contrasta com o metro quadrado mais caro da cidade. A Beira Mar também é o nosso maior palco de contradições. As pontas do Mucuripe e Praia de Iracema são mais democráticas que o miolo. De noite tem funk, forró e piseiro nas barraquinhas que vendem tudo. Sou impressionada com uma delas, cheia de búzios e estrelas do mar. Só isso, as coisas que o oceano nos entrega de graça. É a mesa mais bonita da feira.
Entrei em uma assessoria de corrida e tenho um treino a cumprir, minutos, velocidades, tudo cronometrado. Se eu continuar assim, distraída com tudo ao redor, não vou conseguir atingir as metas.
Mas tenho gosto de ver as maneiras que cada um encontra para driblar o tempo e aproveitar a vida em um lugar bonito, dando ao corpo o que ele mais precisa, banhando as ideias de sol.
Correndo ou andando, é uma grande sorte morar em uma cidade que nos dá o mar de presente, todos os dias. Aconteça o que acontecer, ele está nos esperando, cheio de força e mistério.