Existe sotaque neutro?

O que a exigência de uma padronização de sotaque revela sobre o mercado da arte e da comunicação é que há mais preconceito do que se imagina.

O ano era 2012. Fui aprovado em um edital do Ministério da Cultura, que me levou a morar no extremo sul do Brasil. O objetivo do edital era, justamente, promover um intercâmbio entre artistas de diferentes regiões do país. Porto Alegre, então, foi minha casa durante seis meses e a cidade me trouxe um imenso choque cultural, especialmente, com relação ao sotaque.

Era surpreendente ver a forma como os gaúchos pronunciavam as palavras, as letras pareciam conseguir sair todas da boca, o R era usado de forma especial e eu passei a considerar esse jeito de falar muito mais eficiente e claro. Acreditei que me forçar a exercitar e absorver essa estrutura fonética auxiliaria na minha dicção como ator.

Entretanto, outro fator também me levou a forçar essa mudança na minha maneira de falar. Ao longo desse semestre, passei por diversas situações nada agradáveis, onde sofri com imitações e chacotas de meu sotaque cearense. Achavam “engraçado” a forma como eu falava, diferente, quase exótico.

Essa situação que vivi há mais de 10 anos me fez lembrar da imposição que muitos de nós, artistas e comunicadores, sofremos quando migramos para o sudeste e somos, no campo profissional, forçados a construir o que chamam de “sotaque neutro”. Mas o que seria um sotaque neutro?

Esse dialeto, que também é conhecido como “sotaque branco” ou ainda “sotaque de Jornal Nacional” é uma variação linguística usada na mídia onde buscam imprimir uma padronização da forma de se falar o português brasileiro. O que acho interessante é que a referência de sotaque “correto” é sempre de São Paulo ou do Rio de Janeiro.

Essa exigência está puramente ligada a uma determinação social e histórica e nada tem a ver com a língua, já que se consegue entender o Português em qualquer região do Brasil, desde o Rio de Janeiro, que possui uma forte influência do sotaque de Portugal, até em estados do Norte, que manteve um sotaque mais próximo à prosódia de línguas indígenas.

Se pensarmos nessa origem e na importância de um sotaque, vamos falar de identidade. Nosso jeito de comunicar verbalmente é construído a partir da formação do território brasileiro.

O sotaque, portanto, regionaliza, imprime uma geografia, revela a história de um povo, de um indivíduo. Ao ouvirmos um sotaque, conseguimos intuir sobre sua origem.

Sendo assim, a prática do dito “sotaque neutro”, embora seja um artifício muito utilizado como universalidade de linguagem, na verdade, serve muitas vezes como apagamento de histórias, territórios, culturas, hábitos e povos. Aos poucos, fui aprendendo que sotaque não tem a ver com dicção. Não é porque sou do Ceará que não posso falar de forma clara. Não é porque se é de São Paulo que não se fale “embolado”.

Quando neutralizamos os sotaques em telejornais, rádios, novelas, filmes e campanhas publicitárias, estamos negando a pluralidade, a diversidade regional. Essa negação também contribui, a curto e longo prazo, para a invisibilidade dessa regionalidade em lugares de ampla visibilidade.

É como se nos dissessem que não há qualquer chance de um nordestino ocupar a bancada do jornal ou estrelar uma campanha nacional ou representar personagens longe de caricaturas.

Aqui não falo que paulistas só podem representar paulistas ou pernambucanos só podem representar pernambucanos, a arte pode ir além. Mas por que forçar uma pessoa de outra região a absorver um sotaque que não é o seu como se só houvesse um jeito certo de falar?

Às vezes, não estamos falando de narrativas, mas, sim, de xenofobia!

*Este texto reflete, exclusivamente, a opinião do autor