Das lições de Fernanda Montenegro: nós, artistas, somos uma fábrica de sonhos

E eu não quero outra coisa da vida senão ser operário

Tem coisas que fazem a gente refletir sobre o nosso tamanho, eu acho. Às vezes, a vida vem e te mostra o quanto você é pequeno, miúdo, pra lembrar o que há de imenso ao nosso redor, pra colocar o nosso pé no chão, nos humildar. Outras vezes, acontece o contrário, a vida vem e mostra o quão gigante nós somos, talvez pra gente não esquecer do que somos capazes.

Em alguns momentos, isso muda em fração de segundos e essa mistura de emoções faz um rebuliço na cabeça. Você diminui de tamanho ou se agiganta como num passe de mágica, muitas vezes por palavras lançadas como um feitiço. Foi o que eu senti na última vez que fui ao teatro, duplamente enfeitiçado, um grãozinho de areia e um gigante.

Estou no Rio de Janeiro e, na semana passada, assisti o espetáculo A Lista, com Lilia Cabral e Giulia Bertolli, no Teatro dos 4. Dirigida por Guilherme Paiva e escrita por Gustavo Pinheiro, a peça conta a história da jovem Amanda e da professora aposentada Laurita. Giulia interpreta uma cantora de ópera que ajuda os vizinhos durante a pandemia, inclusive a ranzinza Laurita, personagem de Lilia.

A experiência de assistir esse enredo foi catártico. Ver Lilia em cena é de fazer os olhos brilharem. Uma atriz com verdade na interpretação, uma das que mais admiro, de uma performance hipnotizante. Vê-la com a filha Giulia, que segue os mesmos passos da mãe, então, é emoção em dose dupla. A peça promove um encontro geracional maravilhoso, que faz com que a gente dê muita gargalhada e chore, logo em seguida.

O que eu não esperava é que na mesma noite, eu estaria diante de outro grande espetáculo. Para minha surpresa, sentei ao lado de Fernanda Montenegro na plateia, que dispensa apresentações. Ao final da peça, fomos recebidos pelas atrizes no camarim para celebrarmos o sucesso da temporada e matarmos a saudade.

Sim, fomos, eu e Dona Fernanda, assim mesmo, juntos. Aqui, já adianto sem cerimônia, que meu tamanho era de um átomo. Tremo na base quando a vejo e a vida tem dessas, né?! De repente, eu estava nesse ambiente descontraído com a maior dama das Artes Cênicas do Brasil, ouvindo-a falar sobre amor ao ofício, ao fazer teatral, sobre a dedicação em ser ator/atriz.

Enquanto ela declarava verdadeira paixão e devoção à arte, eu simplesmente a ouvia em silêncio, na tentativa de captar os segredos de uma mestra. Olhava para Fernandona, lembrava de sua trajetória, de seus personagens, tentava compreender a dimensão daquele talento e a admirava como se não pudesse alcançar seu tamanho, tão grande que ela é.

Em um determinado momento, Dona Fernanda anunciou: “Não somos apenas trabalhadores da cultura, somos uma fábrica de sonhos”. E aí que em um segundo, com essas palavras mágicas, eu cresci. O feitiço de Dona Fernanda me elucidou várias questões da arte em uma única resposta: produzimos sonhos. Me agigantei no exato momento que percebi que faço parte das engrenagens dessa fábrica.

Diferente de outras, na Fábrica de Sonhos não há dia exato de funcionamento, os artistas não trabalham em horário comercial e nem a obra de arte tem prazo de validade.

É tudo infinito, intangível, porque mesmo quando um filme sai de cartaz ou espetáculos finalizam suas temporadas, entre outras linguagens, a arte não se perde, não acaba.

A arte é Arte porque ela foi pensada, inspirada, transpassada por um corpo artístico até o espectador - corpo receptor, e quando acontece esse fenômeno há, inevitavelmente, uma transformação, uma reflexão, um sentido, um sentimento. Quando isso acontece não existe fim, prazo ou vencimento. A arte subverte o tempo, o espaço, os corpos, ela se alastra, se propaga, vira outra coisa, vira vida, vira sonho.

Entender que trabalho com produção de sonhos - os meus e os dos outros - me traz uma responsabilidade e um compromisso ainda maior com o meu ofício. A arte faz isso.

Ser artista é tentar oferecer uma nova perspectiva sobre mundo, sobre pessoas. E dentro da minha pequenez, não há nada maior do que criar sonhos, porque é o sonho que move o mundo.

Não quero outra coisa da vida que não seja ser um operário.

Obrigada, Fernanda, por mais esse feitiço.

 

*Este texto reflete, exclusivamente, a opinião do autor