José Celso Martinez Correa, o Zé Celso, diretor, ator, dramaturgo e provocador genial da arte brasileira partiu tragicamente levado pelo fogo, por um calor tão intenso, incontrolável e surpreendente quanto Zé foi em vida. No drama dos dias em que a arte nacional esperou e torceu pelo seu reestabelecimento voltei a’Os Sertões’, obra que me fez conhecer a mente criativa do pai do Teatro Oficina.
Essa reflexão me levou a esse estranho paralelo entre a vida, a obra e a morte de três grandes figuras nacionais entrelaçadas pelo sertão. Zé Celso disse que aprendeu mais na montagem d’Os Sertões’ que em toda sua intensa e talentosa vida. Na peça, as lutas do próprio autor/ator se misturam com as histórias e tragédias de Antônio Conselheiro e Euclydes da Cunha.
Vamos pensar nessas três personagens.
Os Sertões de Zé, Antônio e Euclydes
Antônio Vicente Mendes Maciel, o Conselheiro (1830-1897), nasceu em Quixeramobim. Era leitor voraz de histórias de santos, cavaleiros e místicos que circulavam no sertão. Foi professor, caixeiro, escrivão e advogado prático. Ao casar-se, mudou-se constantemente em busca de uma vida melhor. Passou por Sobral, Guaraciaba do Norte, Santa Quitéria, até que em Ipu flagrou uma traição da mulher. Abalado se atirou na fé e na peregrinação pelo sertão.
Pregando no semiárido, Conselheiro propunha progresso material e espiritual contra o sistema da nova república que excluía os indesejados, seguido por fiéis cada vez mais numerosos, ex-escravos, indígenas expropriados e trabalhadores explorados, vítimas da seca. Nas andanças constrói igrejas, açudes, pontes, cemitérios até se fixar na margem do riacho Vaza-Barris e fundar Belo Monte.
O povoado encravado no sertão baiano virou uma cidade com cerca de 30.000 pessoas, uma comunidade onde todos tinham acesso à terra, uma economia autossustentável e solidária. O modelo da comunidade virou um problema para as autoridades locais e nacionais. Conselheiro e seus seguidores passaram a ser apresentados como subversivos, fanáticos e perigosos. A força do Estado foi usada em toda a sua potência para acabar com o mau exemplo conselheirista.
Antônio Conselheiro profetizou “quatro fogos” no destino da comunidade, quatro ataques do Estado contra Belo Monte. E os fogos vieram! Três ataques da polícia e do Exército foram rechaçados pela força dos sertanejos. Na quarta expedição, ou quarto fogo, soldados trazidos de todas as partes do país promoveram um verdadeiro massacre ao caírem furiosos sobre os conselheiristas.
A luta foi dura e sangrenta, e após um longo cerco o arraial foi completamente destruído. O quarto fogo engoliu Conselheiro, morto ante as péssimas condições do cerco. A tropa tomou a cidade, o sertão virou em um mar escaldante de sangue. Antônio foi desenterrado e decapitado pelo Exército.
A Guerra de Canudos foi coberta por Euclydes da Cunha, repórter do Estado de São Paulo. A reportagem deu origem ao livro "Os Sertões". Euclydes, maior nome do pré-modernismo brasileiro, fez aí sua maior obra, uma das maiores da língua portuguesa. A narrativa desta guerra civil é intensa, é densa, é epopeica. O livro, dividido em três partes – A terra; O homem e A luta – tentou desvendar os cenários e gentes do sertão, transformando aquele massacre em ciência e letras.
O autor/personagem descreve este misterioso ambiente como uma “surda combustão da terra.” Essa combustão mudou Euclydes, o escritor – determinista e racialista – é transformado pelo sertão aos olhos do leitor. Euclydes precisava entender aquele país, suas certezas viraram questões e estudos. Mas essa dedicação ao sertão cobrou seu preço. O tempo dedicado ao entendimento do Brasil, da Caatinga à Amazônia, criou o cenário de um drama trágico.
Enquanto Cunha desvendava o país, Ana, sua esposa, sozinha e carente, conheceu um cadete 16 anos mais jovem, Dilermando. A paixão avassaladora se tornou pública e acabou em um confronto armado. Euclides tenta matar Dilermando, mas, cai morto pelo fogo da arma do amante atacado.
Anos depois o filho mais velho do escritor tentou vingar o pai e acabou igualmente derrubado pelo cadete. Pai e filho mortos pelo fogo metafórico do amor de Ana e Dilermando e pelo fogo efetivo dos disparos fatais. A traição, a tragédia e o fogo do sertão envolveram Conselheiro e Euclydes.
O sertão e ‘Os Sertões’ em Zé Celso
Em 2007, essas duas personagens trágicas se encontraram na ficção, nos palcos do Teatro Oficina. Zé Celso, um antropofágico tardio, em seu permanente devorar e recriar, engole e (re)imagina as duas figuras trágicas. A leitura que ele fez dos dois questiona os padrões e os poderes e levou as complexidades dos grotões do nordeste ao palco.
Zé se debruçou anos sobre o tema e transformou cientificismo determinista em poesia e retrato do Brasil. Encarnando Antônio Conselheiro nos palcos, o autor/ator resolveu sair do mundo urbano e se carregar de sertanidade trazendo seus 'Sertões' da Paulicéia para o Ceará, para a cidade onde nasceu Antônio Conselheiro.
Em 2007, Zé Celso faz de Quixeramobim, cidade com pouco mais de 80 mil habitantes, o centro efervescente do teatro brasileiro. O Oficina do Zé se integrou à comunidade na preparação e na execução do espetáculo. A apresentação durou quatro dias, a cidade se encheu, crianças e moradores da cidade viraram atores, viveram a encenação e rememoraram o conterrâneo que incendiou o sertão no XIX.
A nudez e o texto provocativo de Zé Celso chocou muita gente, alguns abandonaram a apresentação, mas, ao fim, o aplauso foi estrondoso. O “imoral” Zé Celso incomodou o tradicionalismo sertanejo como o moralíssimo beato Conselheiro também tinha feito antes. Ambos usaram seus dons para tacar o dedo na ferida de uma sociedade inclemente, os dois, em suas opostas frentes de atuação foram contraventores da moral aceitável de suas épocas.
A apresentação no município foi um marco para a cidade e para o próprio grupo, uma vez que descentralizou, mesmo que por um momento, o acesso à arte. Zé Celso fez o sertão virar palco, o palco virar sertão.
Sertão, morte e teatralidade no fogo do sertão
Penso se o Sertão tem um apreço especial pelas almas geniais que se tentam desvendá-lo, se essa entidade natural tão acolhedora quanto inclemente envia seu calor para buscar aqueles a quem se apega. Conselheiro caiu no quarto fogo, Euclydes cai diante do fogo passional de uma arma e agora Zé Celso se vai também consumido pelo fogo. Antônio, Zé e Euclides foram transformados e transformaram o sertão, o provocaram, e em seu calor foram imolados.
O arraial de Canudos foi a realização da vida de Conselheiro, ‘Os Sertões’ foram Magnum Opus de Euclydes e de Zé Celso e ao fim dessas realizações o fogo os buscou e os devorou como que em tributo trágico, teatral e performático. No sertão, o fogo tanto destrói quanto prepara a terra para novas lavouras e novas safras.
Então, mesmo com a dor das tragédias, rogamos ao sertão que venha o novo, com a alegria provocativa de Zé Celso, algo que continue a chocar e denunciar a crueza de noss’A terra, a injustiça d’O homen e a inclemência de noss’A luta.
Vai Zé, vai ser sertão e inflamar a eternidade! Evoé!