“Misericórdia senhor que festival de RUGAS são essas?????????”; “Nossa como tá velha!!!”; “Tá véia”; “Nossa, parece que tem 80 anos”; “Tá um couro velho”; “Nossa está bem acabada”; “Com esse dinheiro já tinha feito uma plástica”; “Múmia kkk”; “Jesuuuus, parece um maracujá”; “Com tanto dinheiro e um namorado mais jovem, poderia cuidar mais, tem muito recurso para a mulher se manter mais jovem por mais tempo”
Peço perdão pelo nível dos comentários, pela ortografia problemática, pelo tom chulo, mas esses são alguns dos comentários na postagem de uma mulher de 61 anos, com quase 40 anos de carreiras e uma das maiores comunicadoras do nosso país: Fátima Bernardes. Curiosamente, alguns desses comentários receberam mais de 500 curtidas.
Na ocasião, Fátima gravou um vídeo emulando os famosos “tutorais de maquiagem”, comuns nas redes sociais, e, portanto, aparece nas cenas iniciais sem maquiagem e sem filtro - o que foi o suficiente para inflamar uma audiência que, aparentemente, ficou chocada com o fato de que uma mulher de 61 anos ter rugas.
Esse evento nos remete a um dos fenômenos mais evidentes e mais nocivos das redes sociais: o excesso de procedimentos estéticos e de “filtros”, que modificam virtualmente as feições, parecem ter desacostumado nosso olhar. O natural não é bem-vindo. Não tenho absolutamente nada contra procedimentos estéticos ou filtros, mas a relevância social que eles passaram a ocupar, se elevando a itens quase obrigatórios aos usuários de redes sociais (notadamente às mulheres), sob pena de linchamento virtual, é que me assusta. É preciso reeducar o nosso olhar para a vida real.
Nosso olhar já não aceita as rugas, as estrias, as celulites, os pelos, as manchas, os poros, as olheiras, as celulites. Ainda que a manipulação de imagens e vídeos não tenha sido uma invenção dos nossos tempos, é inegável que hoje ela está na palma da mão, literalmente: não é mais preciso ser um estudioso e expert em photoshop, já que centenas de aplicativos (alguns dotados de inteligência artificial) automatizam e “filtram” nossos corpos e rostos a uma estética padronizada, lisa, artificial.
Nosso olhar já não aceita nossa humanidade, as marcas do tempo, nossas histórias em cicatrizes. Nossos corpos se tornaram objetos a serem expostos, consumidos e validados pelo olhar do outro.
O uso excessivo de ferramentas que remetem ao pioneiro Photoshop fez com que acostumássemos nosso olhar a um “belo liso”, como diz o filósofo Byung-Chul Han. Um belo “chapado”, alisado, sem rusgas e rugas. Um belo sem atrito, sem história, sem individualidade. Um belo pasteurizado, comercializável, filtrado. Um belo totalmente positivo, imperativo e falso.
Refletindo, lembrei da “Síndrome de Paris”, que denomina o fenômeno de quando turistas, especialmente asiáticos, idealizam tanto a cidade pelo que viam em publicidades que, ao desembarcarem na verdadeira Paris, - que, sim, é bela, mas também suja, repleta de ratos, mendicância e com um metrô lotado e cheio de pickpockets – passam mal, chegam a ter febre.
O submundo de Paris não é mostrado em seus cartões postais, mas, visto de perto, parece indigesto para muitos. As pessoas se portam como mercadorias à venda, mostrando seu esplendor, ainda que de mentirinha, filtrado – e, de tanto se verem e verem aos outros dessa forma, começam a filtrar a própria realidade. Se mostram como uma cidade turística em um anúncio de agência de viagens, ocultam seus ruídos, seus labirintos de futuros visitantes - ainda que estes passem mal ao ver o que sempre esteve ali.
*Este texto reflete, exclusivamente, a opinião da autora